Entrevista com Nobel de medicina: ‘Brasil precisa valorizar oportunidades de pesquisa’

carteira de estudante

Em palestra proferida na Fiocruz na última quarta-feira (28/10), o médico norte-americano Bruce Beutler falou sobre sua trajetória profissional e descobertas que o fizeram receber o reconhecimento internacional

O ganhador do Prêmio Nobel de Medicina de 2011, Bruce Beutler, ministrou palestra na última quarta-feira (28/10) na Fundação Oswaldo Cruz. Durante o evento, o cientista norte-americano falou sobre sua trajetória profissional e descobertas que o fizeram receber o reconhecimento internacional, concedido desde 1901 a personalidades que se destacam por promover avanços na ciência e para a humanidade.

O médico contou que o interesse pela imunologia veio, além do incentivo do pai, também cientista, porque doenças infecciosas eram — e ainda são — uma das maiores causas de morte, mesmo com a introdução dos antibióticos há mais de 70 anos. O problema é agravado pela resistência que os microrganismos causadores de infecções vêm desenvolvendo aos remédios.

Suas descobertas consistiram em identificar as células que reconhecem mais rapidamente essas infecções, pois são elas as responsáveis por “dizer” ao sistema imunológico que inicie o ataque contra corpos estranhos, processo chamado de inflamação. Bruce Beutler, junto aos pesquisadores Jules Hoffmann e Ralph Steinman, conseguiu distinguir que células são essas e já detectaram centenas de genes que regulam tais respostas imunológicas.

O evento foi promovido pela biofarmacêutica AstraZeneca, em parceria com o Nobel Media. A visita é parte do Nobel Prize Inspiration Initiative (NPII), um programa global que leva premiados pelo Nobel para universidades e centros de pesquisas a fim de inspirar e envolver jovens cientistas, a comunidade científica e o público. Durante a visita ao País, Bruce Beutler esteve também na Universidade de São Paulo (SP) e na Universidade de Brasília (DF).

Atualmente, ele é professor regente e diretor do Center for Genetics of Host Defense na UT Sowthwestern Medical Center em Dallas, EUA e professor de genética e imunologia no The Scripps Research Institute (Instituto de Pesquisa Scripps) na cidade de La Jolla, Estado da Califórnia

Confira a entrevista de Bruce Beutler à Olimpíada Brasileira de Saúde e Meio Ambiente (Obsma) e à Coordenadoria de Comunicação Social/Fiocruz:

O senhor poderia falar sobre sua descoberta e o impacto dela para o desenvolvimento de novos tratamentos contra doenças infeciosas?

Bruce Beutler: Ao contrair uma infecção por uma bactéria, por exemplo, você começa a ter calafrios, pode ter dor de cabeça e náuseas. Com um número suficiente de bactérias, você pode desmaiar, sua pressão sanguínea baixar ou ter algo como uma septicemia. A pergunta é: como você reconhece a bactéria e como seu sistema imunológico a reconhece rapidamente nos primeiros minutos depois da inoculação [introdução da bactéria no organismo]? O mesmo processo ocorre se você é infectado naturalmente quando, por exemplo, você cai e machuca seu joelho e a bactéria entra em seus tecidos. Suas células a reconhecem e se preparam para atacá-la imediatamente.

Nós descobrimos os receptores que permitem que o sistema imunológico fique atento à infecção nos primeiros minutos. Cada um dos dez receptores presentes nos seres humanos informa ao sistema imunológico quando há uma infecção e, então, ele vai passar a reagir com uma reposta inflamatória. É por isso que acontecem todos aqueles sintomas. Mas isso também salva sua vida, na maior parte das vezes.

O que a descoberta pode fazer, falando de forma prática? Poderia ser usada para a produção de vacinas, de mecanismos que estimulem o sistema imunológico e a resposta dos anticorpos, ou mesmo para entender nossa imunidade, pois quando você tem uma doença autoimune, há uma inflamação a qual ninguém sabe ainda como é provocada. Acreditamos que isso possa ter a ver com um desses receptores, mas isso ainda é uma dúvida.

Essa descoberta já tem sido aplicada atualmente, por exemplo, em algumas drogas para tratamento de verrugas, e tem funcionado. Há outras drogas semelhantes sendo desenvolvidas e, em poucos anos, haverá mais e, então, teremos que descobrir qual o melhor uso para cada uma delas: se poderão tratar verrugas ou, em alguns casos, até alguns tipos de câncer.

A Fiocruz desenvolve muitas pesquisas em malária e dengue. Qual o atual panorama no campo do tratamento de doenças infecciosas?

BB: Essas doenças são muito desafiadoras no que diz respeito ao desenvolvimento de vacinas. Em relação à dengue, uma das vacinas que foi experimentada fez a doença ficar pior. No caso da malária, ela simplesmente é resistente a todas as tentativas de reestabelecer o sistema imunológico. Isso não quer dizer que é impossível, mas, claramente, é difícil. E requer alguns ‘truques’ que nós simplesmente não conhecemos até agora. Nossa descoberta poderia ser aplicada nessas doenças e, talvez, em outras.

Quais são os principais desafios no que diz respeito ao campo de doenças infeciosas no mundo?

BB: Há tantos desafios! Geralmente mencionamos a aids como a doença número 1 e, de certa forma, ela ainda é. Ela tem sido controlada, por conta dos importantes avanços no tratamento da doença, que é milagroso de alguma forma. Se a aids tivesse chegado anos antes, provavelmente grande parte da população mundial teria sido extinta e teria havido uma catástrofe global. Mas, ao contrário, nós conseguimos lidar com isso.

Podemos dizer que a terapia antimicrobiana em geral conseguiu lidar com muitas doenças infecciosas. Mas isso vai durar para sempre? Apesar de termos descoberto o antibiótico, por exemplo, nada pode garantir que o problema está resolvido permanentemente. Há muitas bactérias resistentes a medicamentos surgindo e nossos filhos e netos não têm o tipo de proteção que eu, por exemplo, tive ao longo de minha vida. Há recém-nascidos que morrem de infecções. Isso é muito comum em algumas partes do mundo, como a África. Em todo o caso, o desafio é ‘estarmos à frente’ dos micróbios, esse será sempre o jogo que jogaremos. E eles sempre chegarão com formas criativas de derrotar nosso ‘armamento antimicrobiano’. É uma luta da qual não podemos desistir.

Como o senhor vê o trabalho de uma instituição como a Fiocruz para a formação de jovens cientistas?

BB: Entendo a Fiocruz como uma universidade, pois vocês tem estudantes aqui, de graduação e pós-graduação. Fui para a faculdade de medicina não porque amava a medicina clínica, mas porque era um modo de aprender sobre os problemas que existem nesse universo.

A Fiocruz está aqui no epicentro de várias doenças que são muito raras na América do Norte. É mais fácil entender sobre elas, como se desenvolvem, como tratá-las e suas características. Pode-se dizer que isso é muito oportuno, pois aposto que os estudantes aqui têm contato com esse aspecto da medicina que não estão tão acessíveis na maioria dos outros países do mundo.

E essa é uma instituição importante também na pesquisa de doenças negligenciadas.

BB: Sim! São chamadas de negligenciadas porque são raras na Europa, na América do Norte e há uma tendência em não considerá-las prioridades por pesquisadores desses países. Aqui, obviamente elas não são negligenciadas, pois vocês têm uma posição dominante para entendê-las e enfrentá-las.

Na Fiocruz, os estudantes estão trabalhando com uma nova fronteira para a biologia. Estão em posição de entender e enxergar as coisas antes de quaisquer pesquisadores em outras partes do mundo.

Quais são suas impressões sobre o papel do Brasil no cenário científico global?

BB: Entendo que o Brasil tem um grande papel a desempenhar. O Brasil é o 5º maior país do mundo em território e população e destina muitos recursos para a educação. Com isso, vocês têm condições de exercer um grande impacto no cenário global da pesquisa. Sei que cada país tem seu conjunto de problemas, mas o Brasil tem várias vantagens também.

Estar próximo da ocorrência de uma série de doenças infecciosas, ter acesso direto ao problema é uma grande vantagem. O Brasil é um país já bastante desenvolvido que pode estar na liderança em pesquisas sobre a malária, por exemplo. Isso deveria ser visto como oportunidade.

Como recebedor de um prêmio tão importante, de que maneira o senhor vê as contribuições que seu trabalho pode fornecer às novas gerações de cientistas no Brasil?

BB: Acho que essas contribuições podem ser aplicadas a cientistas em qualquer lugar, não só no Brasil. Todos que estiverem interessados em imunologia e quiserem ir mais longe podem aprender algo sobre o funcionamento do nosso sistema imunológico.

É possível termos um entendimento muito mais avançado sobre os mecanismos da imunidade. Agora que conhecemos os receptores, é uma questão de tempo até que olhemos o sistema imunológico mecanicamente, ou seja, como uma pequena máquina cujas estruturas interagem como engrenagens, porque é isso que realmente ele é.

Fonte: Fiocruz