A USP e a cidade

Artigo por Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

Mais uma vez a USP toma conta das páginas dos jornais, agora em função de sua situação financeira, principal objeto da greve deflagrada por professores e funcionários há mais de cem dias, diante do anúncio de reajuste salarial zero por parte da administração da universidade.

Se tomarmos o debate em curso na mídia sobre a universidade e sua crise como expressão da relação da sociedade com a USP, parece que transitamos entre dois polos. De um lado, ela é reconhecida como a melhor universidade da América Latina, única presente entre as 150 melhores do mundo, responsável por 25% de toda a pesquisa produzida no Brasil e nossa principal formadora de mestres e doutores. De outro, é vista como uma universidade elitista, povoada por “marajás” e “baderneiros” e custeada pelo dinheiro de todos.

O que fundamenta esta relação de amor/ódio pela USP? Me parece que a pergunta central que a sociedade faz neste momento é: a USP é ou não um patrimônio de todos os paulistas e brasileiros?

O que está em jogo, portanto, é a dimensão pública da universidade, abrangendo muitos sentidos além da questão do seu financiamento. Ser “de todos” implica em produzir valores tangíveis e intangíveis que reconhecidamente beneficiem largas parcelas da população.

Como professora da instituição, não tenho a menor dúvida em relação à qualidade do que se produz na USP –que vai além de aulas, teses e artigos. Como ex-aluna de uma USP dos anos 1970, posso afirmar que o acesso à Universidade se ampliou e democratizou, embora haja ainda muito caminho pela frente nessa direção.

Mas é importante reconhecer que se a sociedade questiona a USP é porque, em muitas dimensões, não se reconhece como parte dela.

Podemos tomar o território ocupado pela USP como uma espécie de metáfora –além de uma das dimensões– do que estou tentando dizer. Em São Paulo, o campus Butantã ocupa uma área de 5 milhões de m², encravada como um feudo, pouquíssimo permeável à cidade. O modelo urbanístico do campus é uni funcional, com densidade de ocupação baixíssima –as poucas moradias que temos foram construídas nos anos 1960 para os atletas dos Jogos Pan-Americanos–, com mobilidade baseada no automóvel, enormes espaços vazios, poucos espaços de convivência, uma espécie de branco interrompendo a cidade.

Como acontece com muitos outros campi do Brasil, esse modelo segregacionista herdado da ditadura militar até hoje não foi devidamente revisto, debatido e superado. Assim como não foi revista e superada a forma de gestão da universidade –uma espécie de cardinalato de professores no ápice da carreira acadêmica, que não necessariamente expressam a multiplicidade de atores presentes na instituição, nem aqueles com quem esta deve dialogar.

Se quisermos que a USP seja uma universidade verdadeiramente pública precisamos superar essa lógica do enclave. Isso significa não apenas democratizar e dar vida a seus espaços físicos, revendo completamente sua relação com o conjunto da cidade, mas também democratizar o acesso a seus cursos e serviços e, fundamentalmente, democratizar sua gestão. Tudo isso em intenso diálogo com a sociedade, a verdadeira dona da USP.

Fonte: Folha de S. Paulo

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