Após cortes na Capes, pesquisadores planejam greve e marcha contra ‘colapso da ciência’

Mesmo com recuo parcial do MEC, cientistas temem “uberização de pesquisadores” e exigem “revogação de medidas de austeridade sobre a educação”; governo celebra recomposição do orçamento

Por Rafael Gregorio, Valor Investe — São Paulo
 

Em resposta ao “congelamento” de 8.378 bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) em 2019 pelo governo federal, a classe científica planeja uma greve e uma marcha em reação ao que vê como um “colapso” da ciência brasileira.

O movimento tem uma lista de exigências:

  • revogação imediata de todas as medidas de austeridade que atingem educação, ciência e tecnologia;
  • repasse imediato dos R$ 330 milhões necessários para o cumprimento do orçamento de 2019 do CNPq e a garantia do pagamento das bolsas da agência;
  • descontingenciamento de verbas das universidades federais e de instituições de ensino e pesquisa;
  • recomposição do orçamento dos Ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia, com ampliação para 2020, para cumprir as metas do Plano Nacional de Educação e do Plano Nacional de Pós-Graduação;
  • R$ 948 milhões para recompor o quadro de professores e funcionários e reajustar bolsas de estudos;
  • aplicação de 10% do PIB para educação;
  • destinação de 25% dos recursos do pré-sal para Ciência e Tecnologia;
  • revogação imediata da Emenda Constitucional 95, que instituiu o teto de investimentos por 20 anos.

Especialistas ouvidos pelo site dizem temer uma elitização da pós-graduação stricto sensu e uma “uberização” de cientistas. Também apontam o desperdício de recursos e os prejuízos ao Brasil na corrida por tecnologia de ponta.

As críticas se mantêm mesmo após o recuo parcial da gestão Jair Bolsonaro, que há uma semana descongelou 3.182 das 11.560 bolsas da Capes que haviam sido suspensas.

Em maio, havia 98.627 bolsistas da entidade na pós-graduação. Após os três congelamentos deste ano, são 90.249 beneficiados.

Além disso, falta garantir o orçamento de 2020 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que tem papel importante no custeio da pós-graduação, e agências estaduais – como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – veem suas verbas ameaçadas.

A justificativa do governo para os cortes na Capes é economizar cerca de R$ 15 milhões em 2019 e até R$ 544 milhões nos próximos quatro anos. E o Ministério da Educação almeja rever critérios de avaliação de pesquisas – leia na entrevista do presidente da entidade ao Valor Investe.

“Os cortes põem em colapso o sistema de pós-graduação e afetam a existência das carreiras científicas. Na sociedade do conhecimento em que vivemos, deixar de investir em autonomia tecnológica significa relegar o Brasil a ser eternamente dependente. É muito grave”, sintetiza Flávia Calé, presidente da ANPG.

Hoje, só 0,8% dos brasileiros entre 25 e 64 anos concluíram mestrados, segundo o relatório “Education at a Glance”, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A média dos países do grupo é de 13%.

Flávia também vê nos cortes um implícito desperdício de recursos públicos que haviam sido investidos nos anos passados em pesquisas que, agora, serão suspensas. Para a presidente da ABPG, as opções que restam aos pesquisadores são residuais e deve haver uma fuga de cérebros. “Já estávamos no sexto ano sem reajuste na bolsa, e agora teremos um sem número de trajetórias interrompidas. Essas pessoas vão fazer o quê depois de ficarem oito anos estudando?”, pergunta Flávia.

Ela mesma responde: “Ou esses jovens vão deixar o país e ir desenvolver outras nações, ou vão se tornar força de trabalho precarizada. Vão ser Uber.”

A Receita Federal registrou no primeiro semestre mais de 21,8 mil pedidos de saída definitiva do Brasil. Embora os números não especifiquem cientistas, a continuar esse ritmo, 2019 terá quase o dobro de saídas de 2018 e cinco vezes o total de 2011 – sem contar quem se muda sem avisar as autoridades.

Preconceito do meio empresarial

Graças à ampla exigência de dedicação exclusiva nos cursos de mestrado e doutorado (ou seja, à proibição de acumulação com outras atividades remuneradas), a bolsa equivale ao salário do pesquisador, diz Anna Carolina Venturini, pós-doutoranda pelo IPP-Cebrap, o programa de pós-doutorado internacional do Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento.

Anna concluiu há pouco um doutorado em ciência política em que estudou editais de 2.763 programas de pós-graduação no Brasil. Além da interrupção de estudos importantes, ela prevê uma elitização ainda maior na classe científica.

“Só as pessoas que têm recursos pessoais ou familiares vão continuar pesquisando. A outra opção seria os programas reduzirem a exigência de dedicação exclusiva. Mas, em algumas áreas, isso é muito difícil. Para quem faz trabalho de campo ou atua em laboratórios, os horários dificultam conciliar com outra atividade.”

Nesse ponto, diz a pesquisadora, pesa o que ela vê como um preconceito do meio empresarial brasileiro, principalmente com temas ligados às ciências humanas. “As empresas costumam valorizar cursos de especialização, ou seja, de pós lato sensu. Algumas mantêm programas que subsidiam estudos dos funcionários. Mas, em cursos acadêmicos, isso é muito raro.”

Segundo Anna, são vários os exemplos de pesquisadores que estudavam temas importantes, como a cura da zika, e não terão condições de continuar. Foi assim no Rio, com profissionais fomentados pela Faperj: “Com a crise do Estado, aqueles bolsistas já enfrentavam atrasos no pagamento das bolsas. Eu vi vários alunos desesperados porque não tinham dinheiro para pagar a passagem de ônibus e assistir à aula.”

Para Anna, sobressai uma má vontade dos gestores públicos.

“Lá fora, as pessoas entendem o benefício que a pesquisa pode trazer em inovação e políticas públicas, inclusive a iniciativa privada. É uma diferença de mentalidade, de ver como investimento, não como custo, como sinalizam as falas do governo atual.”

Presidente da Capes comemora verbas adicionais

Já o governo prefere celebrar recentes recomposições de verbas para 2020. Junto do “descongelamento” de bolsas, há uma semana, o ministro da educação, Abraham Weintraub, anunciou um aumento de R$ 600 milhões no orçamento da Capes em 2020, elevado de R$ 2,45 bilhões para R$ 3,05 bilhões.

Segundo Anderson Ribeiro Correia, presidente da entidade, o recente implemento é suficiente para garantir as renovações de bolsas e a manutenção dos fomentos existentes – em outras palavras, mais nenhum pesquisador entre os bolsistas que sobreviveram aos cortes seriam prejudicados.

Mas, como ele mesmo explica, essa verba adicional ainda depende de aprovação pelo Congresso e pelo presidente Jair Bolsonaro.

Correia também antecipou que há tratativas com deputados da comissão de educação da Câmara para vitaminar o orçamento da Capes no ano que vem em mais R$ 300 milhões.

Com isso, o total destinado à entidade chegaria em R$ 3,3 bilhões.

Em 2018, o orçamento da Capes previa R$ 4,2 bilhões, mas, após Bolsonaro congelar R$ 800 milhões, ficou em torno de R$ 3,4 bilhões, dos quais R$ 3 bilhões já foram pagos, segundo Correia.