Estudos abordam livros que foram considerados subversivos

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Crédito: Fapesp

A atividade censória contra obras literárias durante a ditadura militar brasileira é o objeto de pesquisa que levou à publicação da coletânea Livros e subversão: seis estudos, publicada pela Editora Ateliê. A obra reúne artigos sobre casos em que, entre 1964 e 1985, livros foram vistos pelos poderes censórios como possíveis instrumentos de subversão da ordem estabelecida.
Além dos livros, os estudos incluem a perseguição a editores e livreiros que fizeram de suas atividades profissionais uma forma de militância política. A publicação da obra, que contou com o apoio da FAPESP, é resultado do trabalho do Grupo de Pesquisa Censura a Livros e Ditadura Militar no Brasil, vinculado à Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicações e Artes (ECA), ambos da Universidade de São Paulo (USP).
“O grupo de pesquisa busca estudar o processo de censura a livros nos diferentes momentos da ditadura militar brasileira. Os artigos são fruto de pesquisas de doutorado e pós-doutorado de cada membro do grupo, assim como de trabalhos coletivos de todos os integrantes”, conta Sandra Reimão, professora da EACH e do PPGCOM-ECA e organizadora e coautora da obra.
Os artigos são inéditos e escritos especialmente para o livro. Além de Reimão, assinam os textos Felipe Quintino, Ana Caroline Castro, Andréa Lemos, João Elias Nery e Flamarion Maués.
“Entre os objetivos do nosso trabalho está verificar as repercussões dos vetos no panorama editorial do momento e seguir o percurso editorial das obras em questão após o ato da censura. Entendemos a censura, durante a ditadura militar brasileira, como parte de um aparelho de coerção e repressão que resultou em enormes prejuízos para o exercício da cidadania e da cultura”, diz Maués.
Paranoia
Os estudos para a produção dos artigos envolveram análise de documentos históricos, muitos deles pouco estudados e mesmo inéditos. O livro reproduz alguns desses achados, como um parecer da Divisão de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal pela proibição da obra A paranoica, de Cassandra Rios, publicada em 1976 pela Global Editora e Distribuidora Ltda., de São Paulo (SP).
O documento apresenta um resumo da obra: “Ariella, jovem de dezessete anos, é a paranoica. Pelo menos esta foi a definição da autora. Filha do Dr. Rodrigo e de D. Helena; irmã de Afonso e Clécio. Ao descobrir que era filha adotiva do referido casal, ela usa de todos os meios para desvendar os mistérios que envolviam a sua origem. Entrega-se sexualmente, e de forma ridícula, ao pai e aos irmãos (adotivos), joga uns contra os outros para que a verdade aparecesse. Desenvolve os seus instintos e põe em prática o homossexualismo feminino com Mercedes, noiva de Afonso”.
Em seguida, o parecer: “Ariella vai além da paranoia, as descrições dos atos sexuais são feitas nos seus mínimos detalhes, há homossexualismo, violência e o conteúdo do livro é deprimente. Com base no art. 1º do Decreto-lei 1.077/70, sugerimos a sua proibição”. Assina Silas de Aquino Lira Gouvêa, técnico de censura.
Entre os documentos reproduzidos está também uma lista de “comunistas infiltrados na imprensa” emitida pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão de repressão a movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder. A lista traz nomes como o do poeta Ferreira Gullar, morto no último dia 4 de dezembro, Paulo Francis, então repórter do jornal Última Hora, e Zuenir Ventura, cuja trajetória é abordada no artigo Zueno, Zoany, Zwenir: rastros da vigilância ao jornalista Zuenir Ventura durante a ditadura militar, de Felipe Quintino.
No estudo, o autor mostra como o sistema repressivo brasileiro vigiou de maneira rigorosa e constante um grupo de jornalistas. A pesquisa incluiu documentos do Dops disponíveis no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj) e revela como se dava a vigilância e a perseguição aos suspeitos de subversão, em particular aos acusados de vinculações ou simpatias com ideias comunistas. Entre os documentos encontrados por Quintino estão alguns que fazem referência a uma sindicância instaurada para investigar a remessa de 11 livros de “natureza subversiva” da França por solicitação de Zuenir Ventura.
O artigo Livros como prova de subversão: um processo judicial, de Ana Caroline Castro, conta que a posse de 21 livros de “literatura comunista” foi o primeiro item arrolado na acusação de subversão contra Francisco Gomes, um dos fundadores da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização política que participou da luta armada contra o regime militar. Gomes participou do assalto ao trem pagador da ferrovia Santos-Jundiaí. Perseguido pelos militares, fugiu pela América Latina, passando por países como Argentina, Chile, Panamá e Cuba, até retornar ao Brasil com a Lei de Anistia. Morreu no último mês de julho, em Sorocaba (SP), aos 85 anos.
A acusação é parte do processo 102 do Projeto Brasil: Nunca Mais, que, em 1979, reuniu advogados e religiosos com o objetivo de preservar o registro e reconstruir a sistemática da repressão oficial do Estado durante a ditadura militar por meio de processos políticos, em especial os que chegaram à esfera do Superior Tribunal Militar (STM). Criado pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel, pelo pastor presbiteriano Jaime Wright, entre outros, o projeto operou clandestinamente até 1985, período final da ditadura.
Integram ainda a coletânea os artigos Do erótico ao político: a trajetória da Global Editora na década de 1970, de Flamarion Maués; Revista Civilização Brasileira: resistência cultural à ditadura, de Andrea Lemos; e Uma edição perigosa: a publicação de O Estado e a Revolução, de Lênin, às vésperas do AI-5 e ”Quem muda o mundo são as pessoas” – a Banca da Cultura do CRUSP, ambos de Reimão, Maués e João Elias Nery.
Fonte: Diego Freire | Agência FAPESP