A ATENÇÃO PSICOSSOCIAL EM MEIO A TENTATIVA DE DESMONTE PELO GOVERNO BOLSONARO

Victoria Negri, residente de Saúde da Família e conselheira estadual de Saúde do ES pela ANPG.

UMA LINHA HISTÓRICA SOBRE A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA PARA ENTENDER A GRAVIDADE DO DESMONTE DA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

Quando falamos da rede de atenção à saúde mental é impossível não fundamentar historicamente sua luta sem citar a Reforma Psiquiátrica Brasileira, seguindo as correntes sobre a desinstitucionalização no que condiz a deslocar a atenção central da instituição majoritariamente os hospitais psiquiátricos para a comunidade, resguardando então os direitos humanos e a inclusão social.
Esse movimento se desenvolveu no Brasil a partir do final dos anos setenta, apontando várias inconveniências de um modelo manicomial que baseou os paradigmas na psiquiatria clássica e colocou o hospital psiquiátrico como única forma de tratamento, trazendo como consequência a exclusão social e discriminação das pessoas com transtornos mentais no país.
O SUS só originou-se em 1986 pela 8ª Conferência Nacional de Saúde como uma conquista popular e se legitimou com a lei 8080/90, ao contrário de como se instalava anteriormente de forma meritocrática aos trabalhadores, agora a saúde é considerada um direito de cidadania integral, equitativo e universal garantindo a participação popular em um sistema descentralizado, hierárquico e regionalizado.
Mesmo com esse grande passo, porém, a saúde mental continuava discriminada ou “sem um lugar” para seu tratamento, caindo como consequência, novamente, na armadilha da restrição do sujeito a sua patologia onde descarta-se seu contexto social, ou seja, a exclusão social como única forma de tratamento para as doenças até hoje pouco conhecidas e tratadas como tabus cheios de senso comum.
Foi preciso, então, fortalecer em todo o território brasileiro, junto a América Latina, a Reforma Psiquiátrica sendo um movimento histórico de caráter social, político e econômico no qual visa a desinstitucionalização como a desconstrução dos manicômios assim como todos os paradigmas que os sustentam (GONÇALVES, SENA, 2001).
Emergiu, após muita resistência, um dos seus primeiros marcos em 1990 durante a Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, em Caracas resultando na promulgação da “Declaração de Caracas”, onde todos os países Latino Americanos se comprometeram a reestruturar a assistência psiquiátrica, a salvaguardar os direitos civis, os direitos humanos, a permanência do usuário na comunidade e a rever criticamente o papel centralizador e, até então, hegemônico do hospital psiquiátrico (HIRDES, 2009).
Foi a partir daí, depois de ratificar a importância da visibilidade ao tratamento da pessoa com transtorno mental que começamos a ver resultados. Foi promulgada a Lei 10.216 de 2001, depois de 13 anos de espera do Senado Brasileiro, na qual protege os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial à saúde mental, visando sua recuperação dentro do contexto familiar e comunitário.
Entre outras portarias, após essa lei, não menos importantes, que regularizam a verba da atenção psicossocial, tivemos a de Nº 3088, de 23 de dezembro de 2011 em que se:

 

“Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).”

 

Assim como coloca a humanização, respeito aos direitos humanos, autonomia e individualidade, cidadania, tratamento na territorialização, a quebra de estigmas e preconceitos como algumas das diretrizes da atenção psicossocial do SUS. Desta forma, o SUS do Brasil passa a cobrir o tratamento de saúde mental do Brasil.
E tivemos também a portaria Nº 3089, de 23 de dezembro de 2011 onde implementa e regulamenta o Centro de Atenção Psicossocial como atenção integral e tratamento em meio a comunidade:

 

“Dispõe, no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial, sobre o financiamento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). O MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE, no uso das atribuições que lhe conferem os incisos I e II do parágrafo único do art. 87 da Constituição”

 

Compreendendo todo esse progresso de anos, foi com a Reforma Psiquiátrica brasileira que criou-se novos dispositivos em saúde mental no qual possibilita novas abordagens de tratamento, princípios, olhares às pessoas com sofrimento mental, valores e, principalmente, a inserção da saúde mental na rede pública no qual impulsiona formas mais adequadas a “loucura” em seu âmbito social, cultural e familiar (HIRDES, 2009).
É importante ressaltar, contudo, que esse modelo também trouxe bastante resistência das famílias que não são preparadas para o cuidado ao doente mental e precisam de uma formação para tal. Esse modelo muitas vezes é entendido como uma desospitalização sem condições necessárias para viabilizar a reabilitação do usuário e isso influencia na realidade cotidiana da família, na maioria das vezes, incapacitada (GONÇALVES; SENA, 2001).
Seguindo essa dificuldade, também percebemos decisões tomadas pelo governo em 2016, pelo presidente Michel Temer com a Emenda Constitucional 95/2016 congelando os investimentos na Seguridade Social por 20 anos, além de várias normativas específicas para a rede de saúde mental no qual também se inclui uso de álcool de outras drogas.
Somente no final de 2020 no Governo Bolsonaro que a ameaça a atenção psicossocial ficou mais real com o projeto apresentado pelo Ministério da Saúde de revogação de cerca de 100 portarias publicadas entre 1991 e 2014, duas delas citadas neste artigo, atingindo diretamente as estratégias, conquistadas pela Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial, de cuidado a pessoas em sofrimento psíquico resguardadas pelos seus direitos humanos e promovendo a volta do cuidado em redes de internação em hospitais psiquiátricos.
As portarias que estão na mira da revogação estabelecem procedimentos ambulatoriais e o financiamento do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). CAPS colocado como uma das maiores vitórias do movimento político social antimanicomial porque é nele que se fortalece o vínculo comunitário do usuário da saúde mental como uma alternativa às internações em manicômios, ampliando uma recuperação junto a interação sócio-familiar, oficinas terapêuticas e afetos.
Além disso, nessa proposta também, coloca-se a criação de ambulatórios gerais de psiquiatria e de unidades especializadas em atendimento psiquiátrico, bem como, aumento das comunidades terapêuticas, nas quais são alvos de muito denuncias por tortura, conversão religiosa compulsória e trabalho escravo.
É importante frisar que os hospitais psiquiátricos, hoje ilegais, também eram leitos de longa duração especializados apenas em atendimento psiquiátrico. Atualmente só é permitida a internação de curta duração em casos de urgência e emergência em leitos de hospitais gerais, porque a partir de 3 meses, o resultado terapêutico da internação é perdido.
Lamentável ver o Governo retrocedendo uma luta de anos por cidadania e humanização porque, para que haja realmente o deslocamento da ações envolvendo a saúde mental para um contexto comunitário, é crucial a vontade política do estado de direito para a implementação dessas estruturas que, não só, substituem o modelo hospitalocêntrico, mas também educam uma nova visão de saúde. Só assim, com a criação de uma nova cultura de saúde/doença e suas relações em meio ao contexto social (HIRDES, 2009).
O Brasil possui um movimento de Luta Antimanicomial muito forte e atuante reforçado, principalmente, pelo Conselho Federal de Psicologia, um dos principais órgãos fiscalizadores de infração aos direitos humanos de pessoas em sofrimento psíquico. Temos história da luta pela saúde mental e precisamos mantê-la.
Manter a ciência como grande embasamento para o tratamento da saúde mental, a humanização como o grande acolhimento e persistência no caminho a ser seguido com o usuário da rede psicossocial. A arte como a grande base terapêutica para a expressão dos desejos como uma linguagem e a interação para com outros usuários, os profissionais e a comunidade. A promoção a saúde como quebra de estigma sobre saúde mental e discriminações.
Segundo o livro “Holocaustro Brasileiro”, só no manicômio Hospital Colônia de Barbacena, 60 mil pessoas perderam a vida. Pessoas em sofrimento psíquico como também mendigos, comunistas pegos pela ditadura, “mãe solteiras”, pessoas com Síndrome de Down, porém todas atestadas como loucas. A loucura como tudo de errado que existia na sociedade. O manicômio como abraço invisível a negligência. Essas pessoas morreram no anonimato, abandonadas muitas vezes pela família por preconceito e estigma. Não podemos dar nenhum espaço sequer para a volta de um tragédia até hoje, por muitas pessoas, ainda desconhecida.
Trancar não é tratar e nunca foi. É discriminação e higienização social repleta de infração aos direitos humanos distanciando o transtorno mental como objeto de estudo da equipe de saúde multiprofissional. A Luta Antimanicomial resiste porque a Saúde de qualidade como direito de cidadania resiste.

REFERÊNCIAS:

BRASIL, 2016. Emenda Constitucional Nº 95, De 15 De Dezembro De 2016. Planalto, 2016. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm> Acesso em 01 de agosto de 2021.

BRASIL, 2011. Portaria Nº 3.089, De 23 De Dezembro De 2011. Bvsms, 2011. Disponível em <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3089_23_12_2011_rep.html> Acesso em 01 de Agosto de 2021.

BRASIL, 2011. Portaria Nº 3.088, De 23 De Dezembro De 2011. Bvsms, 2011. Disponível em <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3089_23_12_2011_rep.html> Acesso em 01 de Agosto de 2021.

BRASIL, 2001. Lei No 10.216, De 6 De Abril De 2001. Planalto, 2001. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm> Acesso em 01 de agosto de 2021.

GOLÇALVES, Alda Martins e SENA, Roseni Rosângela de. A Reforma Psiquiátrica no Brasil: Contextualização e Reflexos Sobre o Cuidado com o Doente Mental na Família. Revista Latino-Ameriana de Enfermagem [online]. 2001, v. 9, n. 2.

HIRDES, Alice. A Reforma Psiquiátrica no Brasil: Uma (re)visão. Ciência & Saúde Coletiva. 2009, v. 14, n. 1.

ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013, 255 p. ISBN 978–85–8130–157–0