'Desperdício científico' atrasa avanço da biomedicina, diz editora do British Medical Journal

carteira de estudante

Muito esforço intelectual e recursos financeiros são desperdiçados em pesquisas mal planejadas e mal executadas, que não contribuem significativamente para o avanço da medicina, afirma Fiona Godlee

Muito é pesquisado e publicado em biomedicina; mas pouco disso é realmente útil para a medicina. Uma grande parte desse esforço científico é “desperdiçado” na forma de pesquisas mal planejadas e mal executadas, segundo a médica Fiona Godlee, editora-chefe do British Medical Journal (BMJ), uma das revistas científicas mais tradicionais e prestigiosas da área.

Em entrevista concedida durante uma visita recente ao Brasil para participar de uma conferência, Fiona falou de alguns dos principais problemas que afetam o desenvolvimento das ciências clínicas atualmente. Entre eles, no topo da lista, está esse “desperdício de esforço científico”, razão pela qual o BMJ desenvolve uma série de ferramentas digitais de treinamento e aperfeiçoamento de pesquisadores. “Como empresa editorial, há muito tempo lidamos apenas com a etapa final do processo de pesquisa: recebemos o que as pessoas querem publicar, que muitas vezes não é um trabalho tão bom quanto poderia ser, e tudo que podemos fazer é revisá-lo ou rejeitá-lo. Queremos agora, com esse projeto, ajudar a melhorar a qualidade das pesquisas desde a sua concepção”, afirma Fiona.
As ferramentas são desenvolvidas em parceria com a Universidade da Califórnia São Francisco e estão sendo traduzidas para o português, com apoio do Ministério da Saúde, para serem oferecidas gratuitamente na internet, por meio do site Saúde Baseada em Evidências: http://migre.me/jfeRD. “Estamos muito entusiasmados de trazer essas ferramentas para o Brasil”, diz Fiona, chamando atenção para o crescimento da produção científica e da economia do país nas últimas décadas. Metade do material já está disponível no site em português; a outra metade será traduzida até o fim do ano. “Vamos trabalhar com as instituições brasileiras para que elas incorporem esses conceitos aos seus programas acadêmicos.”
Outra preocupação de Fiona é com a falta de transparência das pesquisas clínicas relacionadas ao desenvolvimento de novas drogas, cujos resultados não são sempre divulgados de forma ampla e acessível pela indústria farmacêutica. Trata-se de um problema antigo, que voltou às manchetes recentemente com a divulgação de um estudo realizado pelo grupo de pesquisas Cochrane – e publicado no BMJ -, segundo o qual a droga antigripal Tamiflu, da multinacional Roche, não funciona tão bem quanto se pensava: http://migre.me/jffdp.
“Os efeitos benéficos da droga foram exagerados e seus efeitos negativos, subdimensionados”, afirma Godlee. Segundo ela, é um caso “icônico” de como as empresas farmacêuticas escondem informações científicas que não são favoráveis aos seus produtos.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Quais são os principais problemas na maneira como as pesquisas clínicas são feitas atualmente?
Uma das nossas grandes preocupações é com o desperdício de esforço científico. Muitas pesquisas são feitas sem o planejamento adequado, utilizando metodologias inadequadas ou baseadas nas perguntas erradas. Será que é isso mesmo que precisa ser pesquisado? É isso mesmo que precisamos saber? Alguém já pesquisou isso antes? Um dos erros mais comuns é não checar a literatura científica apropriadamente para ver o que já foi feito antes de se iniciar um projeto. É uma coisa que parece óbvia, mas muitas vezes não é realizada. Outra preocupação é com relação aos vários vieses (bias) que podem ser introduzidos na pesquisa ao longo do processo. Quando a pesquisa é concluída e chega a hora de publicá-la, muitas vezes os pesquisadores já perderam interesse nela, ou os resultados não são os que eles gostariam, então eles nem se preocupam em publicá-los, ou escrevem o trabalho de tal maneira que os editores acabam não se interessando por eles. Então, há um viés de publicação. Em vez de um relato fidedigno do que foi feito, acabamos com um relato bastante enviesado dos resultados.
O fato de eles serem enviesados significa que são incorretos?
Se você olha para a literatura científica como um todo, o viés mais óbvio é que há muito mais resultados positivos do que negativos ou neutros. Há vários motivos para isso; às vezes os autores não se dão ao trabalho de divulgar resultados negativos, às vezes os editores das revistas não se interessam em publicá-los. A mensagem principal é que muitas das pesquisas que são feitas não são boas e precisamos aumentar a capacitação dos cientistas, educar e treinar melhor os jovens pesquisadores, dando a eles os recursos necessários para pesquisar melhor e reportar melhor os seus resultados.
O que a senhora quer dizer com pesquisas que “não são boas”?
Estou me referindo a uma série de coisas. Não é um problema novo, mas é um problema impulsionado cada vez mais pela crescente necessidade de publicar. Os pesquisadores são pressionados a publicar para manter suas carreiras, mas não recebem necessariamente a mesma quantidade de apoio, orientação ou recursos públicos para produzir ciência de qualidade, de forma contínua e sustentável. Muito do esforço de pesquisa atualmente é mal orientado, mal apoiado, mal monitorado e, muitas vezes, supervisionado por empresas que têm um interesse comercial nele.
Essa pressão para publicar é um fenômeno cultural da comunidade científica ou é um problema prático que precisa ser resolvido por novas regras de avaliação e regulamentação institucional? Como aliviar essa pressão?
Uma das maneiras é fornecer financiamento de longo prazo para pesquisas que não dependem do ‘seu último trabalho publicado’ para seguir em frente. Há iniciativas nesse sentido na Grã-Bretanha; não sei com relação ao Brasil. É preciso anular o conceito de que um pesquisador só é tão bom quanto o último trabalho que ele publicou, e que ele precisa publicar um grande número de trabalhos, em vez de um pequeno número de trabalhos de alta qualidade.
O que o caso do Tamiflu revela sobre o funcionamento da indústria farmacêutica?
A mensagem principal é que há uma grande quantidade de evidências clínicas relacionadas a novas drogas que ficam escondidas. A quantidade exata, nós simplesmente não sabemos. No caso do Tamiflu, a análise mais abrangente já feita dos dados disponíveis mostrou que os efeitos benéficos da droga foram exagerados e seus efeitos negativos, subdimensionados, na maneira como a empresa divulgou e comercializou o medicamento para vários países.
O mesmo pode se aplicar a outras drogas?
Pode-se presumir, com base neste e outros exemplos, que esse comportamento é provavelmente o padrão na indústria farmacêutica. Não se trata de uma exceção. Para ter certeza, precisaríamos ter acesso a muito mais informações sobre os relatórios de ensaios clínicos, que não estão disponíveis para análise no momento.
São as empresas que estão escondendo os dados, ou as agências reguladoras que não estão exigindo informações suficientes?
Difícil responder isso; é provavelmente uma combinação dos dois fatores. As agências reguladoras também erram. Elas podem até pedir mais informações, mas não ter o tempo, os recursos ou a expertise necessária para avaliá-las. Já as empresas dizem que estão dispostas a fornecer tudo que lhes for solicitado, mas de que forma e com que rapidez elas fazem isso é algo difícil de ser avaliado. Elas não são incentivadas a praticar a transparência, e o resultado é que recebemos apenas um relato parcial dos efeitos positivos ou negativos de uma determinada droga.
Sobre acesso aberto e revisão por pares
O índice de aceitação de trabalhos no BMJ, segundo Fiona, é de apenas 5%. Ou seja: a revista rejeita 95% dos estudos que são submetidos a ela para publicação. A revista é adepta do sistema “open access” e disponibiliza todo o seu conteúdo gratuitamente na internet. Outro diferencial, em relação às “grandes revistas” em geral, é que seu sistema de revisão por pares também é parcialmente aberto: os autores sabem a identidade dos revisores e vice-versa. Um sistema ainda mais aberto, que está sendo estudado e poderá ser implementado em breve pela revista, segundo Fiona, incluiria a publicação online, junto com o estudo, de todas as etapas de revisão do trabalho, desde a versão original até a versão final, incluindo as observações dos revisores – num formato semelhante ao de uma “linha do tempo” no Facebook.
Fiona destaca que esse modelo aberto não diminui, de maneira nenhuma, o rigor da revista na avaliação e seleção dos trabalhos publicados. Segundo ela, o BMJ, em mais de 170 anos de existência, nunca teve de retratar uma publicação. Um estudo sobre estatinas publicado em outubro, porém, está sendo analisado neste momento para possível retratação, conforme divulgado na semana passada pelo blog RetractionWatch.

Fonte: Blog de Herton Escobar/ O Estado de São Paulo