Balanço do evento Saúde Mental para Agir

 

Helena Augusta Lisboa de Oliveira

Diretora de Juventude da ANPG

 

O evento Saúde Mental para Agir aconteceu na semana de aniversário de 100 anos do patrono da educação brasileira Paulo Freire. Aconteceu também no setembro amarelo,  mês dedicado à conscientização da prevenção ao suicídio. Essas datas foram de um símbolo muito grande, pois o evento buscou, justamente, trabalhar a questão do sofrimento mental, que leva muitos estudantes ao suicídio, relacionada ao modelo, aos relacionamentos e às práticas educacionais (ainda) vigentes em 2021. 

As atividades síncronas aconteceram do dia 23 ao dia 26 de setembro de 2021. Foram 530 pós-graduandos inscritos, de 25 estados brasileiros e do Distrito Federal, de aproximadamente 400 Instituições de Ensino Superior (IES).

O evento trouxe a temática da saúde mental, relacionada nesse contexto ao convívio acadêmico sadio necessário ao desenvolvimento da pessoa, como propriedade primordial para que se consiga agir com sustentabilidade na sua formação cidadã e preparação para o trabalho, na busca da defesa dos direitos humanos e estudantis, na construção de uma sociedade com mais justiça e equidade. Porém, essas são também condições que contribuem para a saúde e bem-estar coletivos. De onde sairá então o passo inicial? Uma das potenciais alternativas é trabalhar com o que já se tem condições nas IES, para começar a transformação, estabelecendo formas de se relacionar mais sadias, que possibilitem o mínimo de compreensão mútua para a formação de uma rede de apoio, tornando possível a realização de ações de transformação social coletivas. 

Eventos de saúde mental convencionais, que não levam em conta a crise de valores humanos presente na cultura e os obstáculos atuais do sistema educacional, apresentam certas dificuldades para lidar com esse tema, pois:

  • Enfocam na importância de melhorar a qualidade de vida dos estudantes indicando exercício físico, alimentação saudável, práticas meditativas e cuidado do sono, mas não questionam a desigualdade social, a falta de recursos do estudante, as pressões para tirar boas notas e prazos para entrega dos trabalhos, em um ambiente de competitividade, onde dedicar tempo ao autocuidado implica obrigatoriamente em ser “menos produtivo” e “ficar para trás”.
  • Dão dicas sobre como se medicalizar e aumentar a tranquilidade e o foco com auxílio de medicamentos, o que pode induzir o estudante a ser passivo, ignorando  que seu “vazio” pode estar sendo causado por uma vida sem sentido e sem conexão humana; seu “déficit de atenção” pode ser consequência da falta de interesse do meio acadêmico em entender seus sonhos e motivações; e seu “estresse” pode estar relacionado à competitividade e exigência de perfeição à qual o estudante é submetido.
  • Apresentam dados estatísticos de correlações entre drogas e doença mental, violências e suicídio, mas não promovem ações de integração e cooperação efetivas e não dão espaço satisfatório para o estudante falar sobre o que lhe preocupa, lhe tira o sono e lhe faz querer afastar-se da realidade.

Por isso, esse foi um evento diferente dos eventos tradicionais de saúde mental, pois reconhece que a comunidade universitária é corresponsável pelo bem-estar coletivo. Neste evento, quisemos valorizar a participação dos jovens, acolhendo sua presença da forma mais integrativa possível, desde a inscrição (que contou com um questionário reflexivo, usado posteriormente nas etapas do evento) até as dinâmicas, que foram o carro chefe do evento.  Elas ocorreram em turnos e dias diferentes, para propiciar que cada um se expressasse e tivesse seu espaço de construção conjunta e protagonismo. 

Voz dos estudantes

A inscrição do evento contou com um formulário de sondagem opcional que examinou os valores e aspirações dos estudantes, suas estratégias para chegarem lá e as dificuldades encontradas, além de como se sentem em relação a isso. Também foram coletadas estratégias a serem aplicadas para se alcançar os valores sociais desejados por eles. Durante as dinâmicas, alguns dos resultados foram discutidos e amadurecidos, e proposições foram levadas ao 44º Conselho Nacional de Associações de Pós-Graduandos (CONAP). Mais informações sobre os diagnósticos, demandas e estratégias dos estudantes serão publicadas em breve.

Dinâmicas

Nas dinâmicas, convidamos a todos a uma corresponsabilização para oferecimento de propostas de ações práticas para melhoria do quadro atual de sofrimento mental e da educação como um todo. 

 O estudante que participou do evento Saúde Mental para Agir, especialmente das dinâmicas, não encontrou dicas sobre como se medicalizar e ser passivo, como se enquadrar num sistema que adoece, se desconectando de si mesmo; como dar manutenção a esse sistema; como ignorar os sinais que seu corpo e mente dão sobre sua saúde; como criar estratégias de se destacar competindo com os estudantes “mais fracos”

Mas, ao contrário disso, constatou-se o quanto a competitividade, a alienação, o isolamento, a submissão impensada ou a irresponsabilidade são prejudiciais à vida de todos. Buscou-se sim, evidenciar nas dinâmicas o potencial de cada um, os tesouros que as experiências individuais podem ser para a coletividade e oportunizou-se que as pessoas pudessem ser elas mesmas, valorizando sua individualidade e o poder do conjunto, do apoio mútuo e da rede de suporte, mostrando na prática aquele jargão de que a união faz a força. Buscou-se oferecer espaço para o protagonismo, reconhecimento e legitimação dos potenciais, sonhos e realizações dos participantes, uma iniciativa que contempla a Educação que Queremos (link da matéria).

 

Palestras

Buscou-se, também, trazer nas palestras conhecimento e experiências de práticas de sucesso que contribuem para a convivência humanizada e desenvolvimento sadio dos cidadãos e profissionais, em harmonia com sua comunidade, tais como a justiça restaurativa, as práticas circulares e mediação social, princípios de cultura de paz da Comunicação Não Violenta (CNV) e um modelo educacional que agrega várias dessas práticas, que são as Comunidades de Aprendizagem.

A palestra de abertura do evento contou com a presença de Flávia Calé, Presidenta da ANPG, reiterando a importância do evento e do assunto aos pós-graduandos e à sociedade. A Diretora de Juventude Helena Augusta Lisboa de Oliveira deu prosseguimento iniciando o evento, trazendo dados importantes sobre o sofrimento psíquico dos pós-graduandos. Concluiu-se que as principais causas de desmotivação relacionadas diretamente à vida acadêmica, originadas e alimentadas nela, estão a competitividade em detrimento da colaboração; o desincentivo ou mesmo a desvalorização da criatividade e potencialidade dos estudantes, com o foco no consumo de conteúdos escolhidos por terceiros, de forma quase passiva; e a falta de percepção da relação entre o fazer acadêmico e a contribuição social efetiva, que beneficie o povo e o planeta.

José Pacheco trouxe relatos e reflexões sobre sua experiência em escolas pelo Brasil e na Escola da Ponte. Afirmou que fatores como sala de aula, turma, horário padrão, aplicação de prova, solidão em sala de aula, contribuem para o adoecimento, e são “privações terríveis que fazem do aprendiz um ser solitário competindo contra os outros”. Falou da solidão do professor, que é a mesma solidão do aluno: “Estamos todos sozinhos no tempo em que dispomos do máximo de instrumentos de comunicação.”. Em um de seus relatos, descreveu a situação em que se encontrava dando aula em uma turma de pós-graduação. Ele perguntou aos estudantes quem eram, e após várias apresentações, perguntou “O que querem saber?”, e a turma se assustou com a pergunta, afirmando que nunca havia recebido essa pergunta. Essa história serviu de ponte para reflexão do papel do professor, que deveria, num modelo de Escola Nova, não construir projetos para o outro, mas construir com o outro; não deve fazer plano de aula, mas ensinar o outro a planejar-se, a saber construir projetos de vida autênticos; deve enfim,  ensinar o outro a planejar sua vida, e não planejar a vida do outro. Completa comentando sobre a inutilidade de aulas, e afirma que o professor “não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é”. Comparou os modelos tradicionais  de ensino com o modelo de Comunidade de Aprendizagem, concluindo que aqueles que participam do primeiro, adoecem, e os que participam do segundo, não. E aqueles que reagem estão menos doentes do que aqueles que não reagem, pois mais cedo ou mais tarde vão refletir a violência naturalizada que sofrem ou sofreram em atos violentos, para os outros ou para si mesmos. Ilustra a situação com os casos na Índia onde suicídios de estudantes aconteceram ao serem reprovados em seleção na faculdade.

 Cléo Lima falou sobre suicídios nas universidades e a indissociabilidade do ser humano em diferentes papéis na vida. Trouxe também reflexões sobre a incoerência de um sistema onde se realiza atividades de aprendizagem com desgosto, sem envolver prazer, ou no mínimo, a curiosidade. Falou ainda sobre a ressignificação do papel do professor e pesquisador, que é enriquecido quando “in-mundo”, que significa que ele se lança no mundo, que não vê o outro como um objeto, mas que o vê, que se intera, que se faz junto no processo.

Bruno Goulart de Oliveira trouxe as bases da Comunicação Não Violenta em sua palestra, identificando os prejuízos da educação que adestra e não educa realmente, formando massas de manobra. Esse tipo de educação utiliza chantagens, punições e recompensas. São estratégias de dominação do outro que contam com a promoção de sua alienação, seu isolamento tanto de sua rede de apoio (ou colegas), quanto de si mesmo, o distanciando de seus próprios valores. Essa “educação” ainda tem como estratégia complementar o desincentivo de práticas que o conectem consigo ou com os outros.

Deisi Oliveira falou sobre a importância de não se conformar com a discriminação e a falta de inclusão, apresentou sua experiência de vida usando a Comunicação Não Violenta para mudar as estruturas sociais a partir da conexão com seus próprios valores e princípios, mesmo em cenários de violência cultural. Junto com Thailane Souza Silva Brito, ambas trouxeram a importância da empatia para a inclusão.

Flávia Beleza trouxe sua experiência com a mediação social transformadora, que busca acabar com as violências no contexto escolar, usando conflitos como chaves de transformação social. Os projetos contam com a formação de integrantes da comunidade escolar de todas as idades e funções, que irão identificar e mediar conflitos, para que sejam reveladas as raízes dos problemas e assim buscarem juntos melhorias para a vida conjunta.

Cléo Garcia apresentou a justiça restaurativa como uma forma de enfrentamento das violências que humaniza as partes envolvidas em um conflito e pode ser aplicada no meio acadêmico. Ela se diferencia da justiça tradicional retributiva e punitiva, pois, ao invés de considerar o crime como uma violação do estado, considera os conflitos e suas perdas como violação de pessoas, que pode vir de qualquer desconforto. Não usa a punição, mas tem em vista a reparação dos danos e a segurança. A vítima tem um papel central e é ouvida, e possui espaço de suporte, ao contrário da retributiva-punitiva onde a interpelação acontece entre o estado e o ofensor, e os danos da vítima servem no máximo como provas, mas não recebem atenção.

Lucy Duró Matos Andrade Silva trouxe reflexões sobre a medicalização de jovens e a educação. Criticou a lógica mercantilista, reproduzida pela educação tradicional, que dirige a responsabilidade do problema social e da educação para o indivíduo, o levando a um entendimento de que ele é culpado por ser inadequado e a medicalizar-se. Apresentou dados do crescimento assustador do consumo de antidepressivos e ansiolíticos, como Rivotril, no Brasil nos últimos anos, e a Ritalina, relacionada ao TDAH. Sua experiência de pesquisa apontou que jovens que passaram pela metodologia diferenciada de Comunidade de Aprendizagem, no Projeto Âncora, onde não há classes ou aulas, não apresentavam quadros de medicalização em massa.

 

Pesquisa Nacional

O evento contou também com a apreciação de um questionário, instrumento que faz parte de um projeto de pesquisa colaborativo que busca fazer um mapeamento a nível nacional das violências e sofrimento mental que os pós-graduandos passam. Como último nível da educação, o estudo da condição psíquica desse público relacionada à academia pode revelar falhas e acertos da educação brasileira. Ele esteve aberto à apreciação e a sugestões, permitindo sua construção plural e participativa.

 

Rede para Humanização das IES

Por fim, o evento inaugurou a Rede para Humanização das IES (RHIES), uma plataforma que tem por fim promover transformações culturais nos espaços acadêmicos, combatendo as violências e promovendo a saúde mental e a Cultura de Paz nas Instituições de Ensino Superior (IES). Serão disponibilizadas e compartilhadas sugestões de ferramentas e práticas para construção de uma vida acadêmica que faça mais sentido, mais alinhada aos valores e direitos humanos. O participante poderá compartilhar suas experiências, fazer amigos, trazer materiais e construir conjuntamente a plataforma. Poderá também pedir ajuda, encontrar ideias, materiais, cursos e profissionais que auxiliem a fazer a transformação no seu espaço, seja para melhorar sua vivência específica, local, ou em grande escala, em toda a instituição.

 

As ações do evento não se concluíram com ele, pois ele é parte de um movimento de transformação que perdurará até que a educação alcance o seu objetivo de promover de fato o desenvolvimento pleno da pessoa.