USP alcança 100 mil titulações e pós-graduandos fazem renúncias para continuar pesquisando

carteira de estudante

A reportagem veiculada no Estadão do último domingo (19) sobre a comemoração de 100 mil titulações de mestrado e doutorado pela USP evidencia a importância de uma política de valorização das bolsas de pesquisa, que vem sendo defendida pela ANPG na Campanha de Bolsas 2011. Confira a matéria.

Maior universidade da América Latina trabalha agora para melhorar qualidade dos programas. No ano em que completa 77 anos, a Universidade de São Paulo (USP), maior instituição de ensino superior da América Latina, comemora o total de 100 mil títulos de pós-graduação, entre mestrados e doutorados. Como feito, agora a universidade se volta para a necessidade de discutir novos critérios para aprimorar a qualidade dos programas.

O número de 100 mil títulos se refere apenas aos trabalhos registrados após 1969, quando surgiram os padrões para a pós-graduação do País. Ficam de fora dessa contagem, portanto, inúmeras personalidades que obtiveram o reconhecimento acadêmico antes daquele ano, mas ajudaram a compor os cenários político, intelectual e científico do País, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, os literatos Antonio Candido e Alfredo Bosi, o economista Antonio Delfim Netto, o jurista Miguel Reale Júnior, o geneticista Crodowaldo Pavan e o cardiologista Adib Jatene, entre outros.

A universidade – que hoje abriga 56 mil estudantes de graduação e 22 mil de pós-graduação – realiza um grande evento em outubro, quando o marco simbólico dos 100 mil títulos será atingido. Do total, 53% são mestrados e 47%, doutorados. A unidade que mais produziu títulos – 9,5% – foi a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. "Os números, embora importantes, devem ser acompanhados por qualidade contínua e crescente", afirma o reitor da USP, João Grandino Rodas. Segundo ele, "a tendência é exigir mais dos alunos, visando à formação ampla dos titulados".

Foto: Ernesto Rodrigues/AE
João Alex Carneiro é diretor da Associação de Pós-Graduandos (APG) da USP e diretor de Políticas de Emprego da ANPG.

Renúncia pessoal e profissional marca período

Orçamento apertado, pouco tempo para o lazer e muitas horas de estudo. Para consolidar o desejo de ter um título pela USP, os estudantes de pós-graduação, bolsistas ou não, acabam fazendo uma série de renúncias na vida pessoal e profissional. No caso daqueles que recebem bolsa, o trabalho fica ainda mais comprometido, pois algumas agências de fomento exigem que eles não tenham outra fonte de renda.

A situação foi diagnosticada pela revista Science, que publicou, no fim do ano passado, um raio X da pesquisa no País. Um dos títulos da reportagem define os estudantes de doutorado como "talentosos, mas subfinanciados". O texto descreve a rotina de um pós-graduando em bioquímica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com rendimentos que não ultrapassam R$ 2 mil, ele enfrentava a aventura de se sustentar e ajudar a família. Ninguém ganhava mais do que ele em sua casa.

As dificuldades também perpassam a vida dos alunos da USP. Rutinéia Micheletto, de 32 anos, doutoranda no departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, precisa da ajuda do pai para se sustentar. Há um mês, ela conseguiu uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) de cerca de R$ 1,8 mil. Mesmo assim, ainda não é suficiente para as despesas. "Isso desestimula muita gente, principalmente profissionais que podem ter uma renda melhor. Eles não vão se submeter a pressões e prazos de uma pós", afirma. "Só termina um doutorado quem realmente ama a vida acadêmica."

O mestrando em Filosofia João Alex Carneiro, de 28 anos, concorda com Rutinéia. "Não dá para ter uma vida muito dispendiosa." Ele veio de Vitória (ES) para se titular pela USP. "Mesmo tendo alguns problemas, a USP oferece uma estrutura muito boa, com bibliotecas e vida cultural."

Para o professor titular da Faculdade de Direito da USP e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, o grande obstáculo dos alunos é conciliar atividade profissional com estudo. "A maioria trabalha. Eles se desdobram para atender as exigências da vida prática e da pesquisa."

Empregabilidade

O mestrando João Alex Carneiro diz que alguns setores públicos não valorizam a pós-graduação. "Isso desestimula o pesquisador a atuar em outras áreas além da acadêmica mesmo", opina.

Kazuo Nishimoto, do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Escola Politécnica da USP, destaca outro obstáculo. "O Brasil ainda não tem empresas nas quais se possa absorver de forma eficiente esses titulados", afirma. "Isso começa a mudar, porque a indústria está se preparando, requisitando mestrandos e doutorandos. Mas a transformação é tímida."

Reflexão

 

O pró-reitor de pós-graduação Vahan Agopyan afirma que o momento é de reflexão. "Estamos com um modelo antigo, da década de 1960", destaca. "Precisamos nos questionar: queremos formar doutores só para alimentar a universidade ou para termos recursos de alto nível para o desenvolvimento do país?"

Até agora, nenhum pesquisador titulado pela USP faturou um Prêmio Nobel. Contudo, alguns já receberam homenagens equivalentes em áreas que não são contempladas pela academia sueca. O físico José Goldemberg, por exemplo, recebeu em 2008 o Blue Planet, principal homenagem aos benfeitores do meio ambiente. Dois anos antes, Paulo Mendes da Rocha recebeu o Pritzker, prêmio mais importante da arquitetura mundial. E o reitor João Grandino Rodas recorda que o principal candidato brasileiro a um Nobel é o neurocientista Miguel Nicolelis – um "uspiano" que não economiza críticas à própria USP.

Para os titulados, o marco de 100 mil trabalhos de pós-graduação guarda histórias e sentimentos de gratidão à universidade. "Tenho 30 anos de USP", conta o ministro da Educação, Fernando Haddad, que fez a graduação, o mestrado e o doutorado na área de Direito. "Eu me sinto, mais do que tudo, um uspiano. Entrei com 18 anos e nunca mais saí da USP – e ela também não saiu mais de mim."

A vida do geógrafo Aziz Ab’Saber também sempre orbitou ao redor da USP. Lá ele descobriu sua paixão pela geografia e se tornou uma referência, dentro e fora do Brasil, quando o assunto é impacto ambiental da ação humana. Recorda sorrindo que, em 1946, foi contratado como jardineiro pela universidade. A ideia foi de um professor. "Era um jeito de manter um pé na USP", afirma.

O casal Victor e Ruth Nussenzweig, responsáveis pelas principais descobertas que poderão levar a uma vacina contra a malária, iniciaram suas carreiras na Faculdade de Medicina da USP. Lá, fizeram o doutorado. Victor recorda a grande liberdade de que gozavam para pesquisar em uma faculdade ainda em criação. "Não tive um orientador de doutorado", recorda. "Naquela época, a tese dependia muito mais do aluno."

Professores pioneiros dão valor à titulação – Os professores que detêm os primeiros títulos registrados após 1969 destacam a importância que a titulação teve em suas vidas profissionais. "A comemoração das 100 mil teses da USP demonstra que desde seu início houve a criação de um ambiente fértil de pesquisa, o que propiciou a formação e o desenvolvimento de um grande número de pesquisadores e de alunos de iniciação científica, mestrado e de doutorado em todas as áreas do conhecimento", destaca o professor Hildebrando Rodrigues.

Ele ainda dá aulas e orienta alunos. Rodrigues apresentou seu mestrado na área de matemática no campus de São Carlos em novembro de 1970. O estudo investigava equações diferenciais. O segundo titulado, que obteve o título de mestre uma semana após Rodrigues com uma pesquisa na área de recursos hídricos, saiu da USP depois de 33 anos. Hoje, Arthur Mattos é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). "A pós foi fundamental na minha vida", considera.

Mattos destaca que o desenvolvimento da pós-graduação na USP teve grande apoio das agências de fomento. "Em São Paulo, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) é essencial. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) também é muito aparelhado e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) é fundamental."

GERAÇÃO PÓS-1969

Mayana Zatz. Em 1974, defendeu uma tese de doutorado em Ciência Biológicas em que estudou distrofias musculares hereditárias.

Miguel Nicolelis. Em 1989, defendeu sua tese de doutorado na Faculdade de Medicina. O trabalho recorria à computação para analisar propriedades de redes neurais.

Fernando Novais. Seu doutorado, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), de 1973, inovou a análise da dinâmica entre metrópole-colônia.

Anamaria Aranha Camargo. Em 1997, defendeu o doutorado pelo Instituto de Ciências Biomédicas e pela Universidade de Wurzburg, na Alemanha. Teve papel decisivo no Projeto Genoma.

Eros Grau. O ministro aposentado do STF obteve o doutorado em 1972 com a teseAspectos Jurídicos do Planejamento Metropolitano.

 

Fonte: O Estado de S. Paulo. Matéria publicada em 19 de junho de 2001 (domingo).