Relatos de um sobrevivente. Por uma juventude viva

Por Richard Santos*

Há algum tempo, temos visto o acirramento das posições conservadoras relativas à redução da maioridade penal, muito se tem discutido. Porém, não vimos uma discussão relativa ao cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, conquista fundamental advinda da constituição promulgada em 1988.

Esta necessidade dos conservadores em trancafiar um número cada vez maior de jovens praticantes de atos infracionais, sem discutir, anteriormente a isso, uma verdadeira aplicação do ECA, como o estatuto é conhecido, nos possibilita fazer uma associação desta hipocrisia pequeno-burguesa as marchas pela paz. Pois, quando vejo os pais de jovens assassinados nas cidades brasileiras, não faço distinção se branco ou negro, homem ou mulher, pobre ou rico, considero que aquela vida ceifada é um grande prejuízo para o Estado brasileiro e seu desenvolvimento.

Entendo que as forças que promovem a matança e o extermínio dos jovens, são as mesmas que blindam as casas ricas da zona sul e se comprazem com a tranquilidade ilusória da falsa segurança de seus filhos que usam drogas dentro dos condomínios. Aqui, quero dizer que reconheço como força promotora da matança, a todas as entidades, associações, cidadãos de bem ou de mal, que nos seus espaços reservados, no conforto do seu lar ou no seu momento de lazer, se esquivam de fazer uma leitura crítica do processo pelo qual o país têm passado, e só acordam, se levantam, quando o resultado de sua própria omissão bate a sua porta e faz vitima um ente querido. Todos são responsáveis!

Sempre busco construir o raciocínio crítico associado a minha experiência pessoal, e também acadêmica, não consigo desassociar um do outro na compreensão da complexidade do tema. Deste modo, recordo minha infância e adolescência vivida no bairro do Rio Comprido, no Rio de Janeiro, bairro da zona norte carioca, porém, bem centralizado, fazendo fronteira com o Catumbi, Estácio, Laranjeiras, Santa Tereza, e, atravessando o túnel Rebouças, Lagoa Rodrigo de Freitas, Ipanema e Leblon. Nesta época, o Rio Comprido era conhecido como o bairro proibido, tamanha violência promovida pelas gangues associadas ao narcotráfico em sua disputa geopolítica por ampliação do mercado das drogas, e financiada por figurões invisíveis viventes do outro lado do túnel Rebouças.

Atualmente o Rio Comprido faz parte de uma região em transformação, na época de minha narrativa, abrigava a sede de importantes empresas, como a Fundação Roberto Marinho, Globosat, Datamec, Universidade Estácio de Sá, os funcionários destas empresas alimentavam o mercado de drogas locais, gangues de variadas partes do Rio de janeiro lutavam para entrar no mercado de drogas do Rio Comprido, um dos melhores, financeiramente mais aquecidos da época, porém, este movimento mercadológico fazia com que aumentasse também a violência pelo controle geográfico do espaço, daí se instala a contradição, ou a dialética marxista, a luta violenta quando chegava ao asfalto, onde corpos negros eram deixados jogados dentro de latas de lixo esquartejados, outros amanheciam perfurados de bala perto das empresas, ou bandidos em fuga roubavam os carros que os trabalhadores estacionavam nas estreitas ruas locais, neste momento, os consumidores de drogas viravam vítimas do próprio mercado que estimulavam, e exigiam mais reforço na segurança, e, em outros casos, contratavam e/ou financiavam matadores para dar uma limpada na área, e proporcionavam a morte do jovem que lhes forneciam os ilícitos. Enfim, são contradições experimentadas por todos os moradores do Rio Comprido, que como eu, sobreviveram aos anos 1980 e 1990, e são contradições que me chamam atenção até hoje.

Estas contradições me fazem lembrar o mestre Milton Santos, reconhecido geógrafo brasileiro, que dizia que no Brasil não vivíamos uma democracia em sua plenitude, mas uma democracia mercantilista, onde o mercado é que demandava as ações dos três poderes e ressignificava o conceito de cidadão, faz-me lembrar, também, o historiador marxista Eric Hobsbawn que dizia em “A era dos extremos”, que o capital se reinventava e nesta reinvenção produzia a doença e o remédio para sua própria doença, porém, sempre de acordo com os interesses da burguesia gerente do capital.

Assim, deixo meu questionamento, a quem interessa a redução da maioridade penal? A quem interessa a não aplicação plena do Estatuto da Criança e do Adolescente? A quem interessa que encarceremos e matemos cada vez mais brasileiros a cada ano, e vejamos reduzidas, cada vez mais, as forças motoras da nação oriundas das periferias e guetos brasileiros? Certamente interessa aos propósitos da mesma burguesia que secularmente tem jogado o jogo sujo da manipulação e construção de mentalidades voltadas a reprodução de seus signos e interesses escusos, interessa àqueles que invisivelmente, para a grande maioria, controlam os fantoches legislativos traidores da confiança dada através do voto, interessa, principalmente, aos órgãos de segurança oriundos das ditaduras brasileiras que seguirão cada vez mais batendo recordes de assassinatos de jovens negros em nome do bem estar social.

Como um jovem sobrevivente do holocausto carioca que foram os anos 1980 e 90 no Rio de Janeiro, que não se deixou cooptar pelo crime (des) organizado, que perdeu na guerra das drogas e na omissão estatal o pai, o tio e alguns primos, sem contar os amigos de brincadeiras e peladas na rua, digo não a redução da maioridade penal.

Como um jovem que encontrou no movimento Hip Hop um canal de expressão e emancipação humana, um caminho para o auto empoderamento e elevação da autoestima destruída, digo que é urgente a reforma política, urgente o fim do financiamento privado das eleições, é urgente a regulação dos meios de comunicação, é urgente o fim dos autos de resistência, e mais do que urgente o empoderamento da maioria historicamente alijada do processo político brasileiro que se quer democrático. É urgente!

Referências para compreender o Rio de Janeiro nos anos 1980 /90

Livros

Abusado: O dono do morro Dona Marta- Caco Barcellos
Assalto ao poder- O crime organizado- Carlos Amorim
Memórias do submundo- Um alemão desce ao inferno no Rio de Janeiro- Rodger Klinger

Vídeos

Noticias de uma guerra particular-


A guerra do tráfico no Rio-

Falcão- Meninos do tráfico

*Richard Santos é doutorando em Sociologia da Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB)
Fonte: UJS
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