As cotas na pós-graduação são para um país que tem pressa

Por Gabriel Nascimento*

As transformações sociais levadas a cabo pela era Lula, fazendo um reviravolta na senzala e casa grande no Brasil, não chegaram ainda à pós-graduação. Os doutores negros ainda representam a minoria e os programas de pós-graduação em áreas estratégicas têm composição absolutamente branca e sem diversidade étnica.

Essa é uma discussão inadiável. Entidades como a Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG) vêm discutindo o assunto com suas bases. A discussão ganhou um registro importante depois da criação pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes), agência ligada ao MEC que regula e avalia a pós-graduação no país, do grupo de trabalho Inclusão Social na pós-graduação. O grupo tem a presença de reitores, pesquisadores e pós-graduandos, em que participo representando a ANPG e os pós-graduandos brasileiros.

A discussão é inadiável porque o Brasil tem pressa. Dialogo todos os dias com vários pesquisadores e colegas sobre o assunto. A maior preocupação das pessoas mais progressistas é que, com as cotas na graduação, o perfil da universidade venha mudando e, portanto, não precisamos de cotas na pós-graduação. A lei de cotas na graduação e sua efetivação de fato vêm mudando significativamente o perfil na universidade e isso é inegável. Basta transitar nos corredores dos principais centros universitários do país e basta saber que as universidades estão mais próximas do povo, no interior do Brasil. Porém, uma década depois da efetivação das primeiras políticas de ações afirmativas com reserva de vagas iniciadas nas universidades estaduais, também é possível tirar algumas conclusões passando pelos programas de pós-graduação das universidades brasileiras.

A primeira delas é que a pós-graduação não acompanhou a mudança de perfil da graduação significativamente. As duas últimas reuniões do grupo de trabalho revelaram que nós, pretos, pardos e índios representamos, no máximo, 16% dos pós-graduandos brasileiros. Ou seja, um número bastante insignificante levando em conta as mudanças que aconteceram na graduação. A falta de diversidade étnica na pós-graduação se reflete na contratação de professores das universidades, por consequência. As dezenas de milhares de novos professores contratados via concurso desde o surgimento do Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), pelo qual Lula criou 18 universidades federais e centenas de campi pelo país, têm, em sua maioria, professores brancos e dos centros urbanos. É essa realidade que precisa mudar a partir da pós-graduação.

A segunda conclusão é que as mudanças no perfil dos estudantes de graduação podem não impactar positivamente a pós-graduação por alguns motivos. O primeiro deles é o mundo do trabalho. Os estudantes cotistas que hoje estão nas universidades são atraídos, e não é nenhuma novidade dizer isso, pelo mundo do trabalho. A pós-graduação hoje impele à maioria de nós o retardamento da nossa vida laboral, sendo que preferimos nos dedicar à pós-graduação a ter que ingressar no mundo formal do trabalho. Ou quando ingressamos nesse mundo formal sofremos graves consequências em nossos programas. Há casos terríveis de perseguição, agravamento e, inclusive, desligamento de pós-graduandos devido a não poderem se dedicar ao trabalho de pesquisa. A vida laboral que agrava a vida daqueles que trabalham formalmente e estão na pós-graduação é a mesma que afasta muitos estudantes da dedicação à pesquisa na pós-graduação, inclusive esses que hoje são cotistas na graduação. Radicalmente ou não, o mundo do trabalho vem antes da pós-graduação por causa da necessidade de subsistência. Nossos pais, de origem humilde, vivem perguntando a nós, que fomos cotistas na graduação, por que já não estamos ganhando dinheiro como os demais. O segundo motivo é que a pós-graduação se comporta como o Olimpo da universidade brasileira. Toda a confusão entre o público e o privado, corporificada pelo patrimonialismo, está mais forte e contundente na pós-graduação. Ao mesmo tempo que defendemos com força os nossos programas e sua produção intelectual qualificada, tão necessária para o país, é preciso admitir que as seleções de mestrado e doutorado não têm um padrão comum, e as escolhas não obedecem a critérios de seleção e classificação claros. Embora esses programas defendam um discurso forte de meritocracia, muitas vezes duvidamos se existe mesmo meritocracia na pós-graduação. E, no entanto, não aprofundando essa discussão, o que queremos é mais isonomia na seleção. Por alguns desse motivos, a diversidade étnica é bastante precária.

A falta de diversidade é ruim porque as metas que o Brasil quer alcançar precisam da cara e da vontade do povo brasileiro. Sem povo a ciência perde o seu papel êmico e pode correr o risco de uma suposta neutralidade universalista já provada como não existente há décadas. A ciência que queremos que produza desde o conhecimento básico até conhecimentos avançados, desde o combate intensivo às doenças, o fortalecimento da educação básica até o empoderamento da indústria de defesa é a que precisa de negros, pardos e índios. Queremos o povo brasileiro, em sua diversidade, fazendo ciência. Temos e devemos desconstruir a ideia de “aptidão”, “perfil” e “jeito” para fazer ciência. A elite sempre criou essas fantasias para afastar o povo do poder.

As cotas na pós-graduação são para um país que tem pressa. Um país que vê a guinada conservadora no seu congresso nacional e uma grande imprensa organizada em forma de partido já pensando em ganhar o poder em 2018 é um país que tem pressa. Isso só me lembra os anos de fome que o país viveu. A fome foi eliminada do nosso mapa, mas o Brasil dos ex-famigerados agora têm nova fome, e a fome requer pressa. É a fome de construir esse país continental e transformá-lo numa verdadeira potência mundial.

*Gabriel Nascimento é diretor da Associação Nacional de pós-graduandos, mestre em Linguística Aplicada pela UnB, e doutorando em Letras pela USP. 

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