Profissionalização do cientista: um presente de grego

carteira de estudante


Na famosa guerra de Troia, depois de mais dez anos de combates, os gregos tiveram uma ideia genial: construíram um cavalo de madeira e ofereceram como presente simbolizando o fim da guerra. Os troianos aceitaram (conta a lenda que o cavalo era muito bonito) e transpuseram o presente para dentro de sua muralha. Durante a madrugada, os guerreiros gregos, escondidos dentro do cavalo, saíram e conseguiram destruir a cidade de Troia. A proposta de profissionalização do cientista, que tem ganhado repercussão a partir da proposta da neurocientista e professora da UFRJ Suzana Herculano-Houzel, é assim: bonita e promete um monte de coisas boas, mas assemelha-se bastante ao famoso cavalo de Troia, ou, como se diz no bom português popular: um verdadeiro presente de grego.

Participamos na última terça-feira (13/08) do seminário sobre a profissionalização do cientista na Câmara dos Deputados, organizado pelo deputado federal Glauber Braga (PSB/RJ) para debater a proposta de profissionalização da carreira de cientista. Com certeza, a professora teve o grande mérito de trazer a discussão da desvalorização do pós-graduando para um patamar elevado, alcançando mídia e atenção de parlamentares. O debate foi rico e qualificado. O grande consenso foi que a situação do pós-graduando não reflete sua importância para a pesquisa, e o encaminhamento do seminário seguiu para elaboração de um projeto de lei que combata essa ausência de direitos. Contudo, consideramos importante debater a proposta da Dra. Houzel, pois acreditamos que ela não consegue resolver os problemas identificados.

A proposta apresentada pela neurocientista, embora tenha um reconhecido caráter mobilizador, é na verdade bastante vaga e um tanto ingênua. Ao final, apenas facilita a contratação (e demissão) de auxiliares de pesquisa pelos laboratórios, privatizando nesses espaços a decisão de utilização da verba pública, hoje distribuída pelas agências de fomento em uma política consolidada de bolsas de pesquisa – ainda que insuficiente.

A proposta é vaga porque não responde dezenas de questões a respeito das consequências da profissionalização. Como diz a própria dra. Suzana, “primeiro tem que regulamentar, para depois discutir os detalhes”. Ora, que regulamentação é essa em que os “detalhes” não são explícitos e só serão discutidos depois? O resultado disso pode ser transformar a atual verba de bolsas para mestrandos e doutorandos em verbas a serem disputadas por laboratórios já existentes para contratar auxiliares de pesquisa. Como consequência, teríamos uma quantidade muito menor de vagas que o atual número de bolsas para a pós-graduação.

Ademais, a proposta é também ingênua ao supor que a criação da profissão resolverá os problemas de valorização do jovem pesquisador no país. Pelo que foi descrito, as consequências serão a criação de uma profissão que já nasce precarizada e o aprofundamento da elitização da pós. 

A criação da profissão de cientista significa que aquele que tem uma graduação pode ser contratado pelos laboratórios institutos de pesquisa. De acordo com esta proposta, a pós-graduação e a profissão de cientista são duas coisas diferentes (portanto, NÃO É uma proposta de profissionalização dos pós-graduandos). Sabemos, desde 1988, que a forma de ingresso no serviço público é através de concurso. Ser contratado para trabalhar na universidade pública sem concurso significa terceirização ou contrato temporário (precário) de trabalho via fundações. É justamente nesse perfil que se encaixarão os jovens “cientistas”: serão trabalhadores com contratos precários em algum laboratório e que ingressaram por indicação de alguém. Esse alguém é um docente/pesquisador, que tem um regime de trabalho estável e que pode lhe demitir caso você não cumpra aquilo que ele determinar. Em resumo: um laboratório, duas classes totalmente distintas de pesquisadores. Assim, o jovem cientista não terá nenhuma garantia de formação. Isso nos lembra de uma campanha dos estudantes secundaristas que criticavam os rumos do ensino técnico: “queremos mais que apertar parafusos”. Se a proposta ora apresentada se viabilizar, é exatamente o que faremos: apertar parafusos (e pipetas) laboratórios para sustentar a pesquisa de alguém conceituado, sem opinar sobre os rumos desta pesquisa. 

Mas fica muito pior quando a professora fala sobre a pós-graduação. Este docente/pesquisador que indicou a sua contratação será o chefe de laboratório ou pesquisador sênior de onde você irá trabalhar. Apenas ele poderá lhe indicar para fazer a pós-graduação
stricto sensu, que será necessariamente doutorado – a proposta é acabar com o mestrado. Isso mesmo: para fazer pós-graduação (stricto sensu) você precisa antes ser contratado e depois ter um QI (quem indica). Ah, mas e se eu não quiser (ou não conseguir, ou não tiver vagas, ou não tiver ninguém que indique…) ser contratado como cientista, não poderei fazer pós-graduação? Sim, mas apenas lato sensu. Mestrado será coisa do passado e doutorado será reservado apenas para quem tiver QI, e isso será institucionalizado (ironicamente, a proposta diz querer acabar com as “panelas” na universidade).

Ressalte-se que o doutorando continua trabalhando no laboratório, então terá que dar conta da sua pesquisa de doutorado e também das horas trabalhadas como auxiliar de pesquisa ao mesmo tempo. Não é preciso dizer o que acontece se o pós-graduando pensar de uma maneira diferente do chefe de laboratório ou do orientador a respeito dos rumos da pesquisa. Assim, se você acha que hoje o seu orientador mais parece um patrão, bem, com essa proposta de profissionalização ele efetivamente o será.

Ficam
, então, algumas perguntas: só será possível entrar no doutorado com QI e após ter trabalhado alguns anos como auxiliar de pesquisa? Quando o jovem cientista terá liberdade de pesquisa, ou seja, direito de escolher o tema a ser pesquisado neste formato? Vale a pena acabar com o mestrado no Brasil só para aplicar mecanicamente modelos internacionais? Como se dará a expansão e interiorização da pós-graduação e/ou da prática científica no país? No caso de uma inovação, quem fica com a patente? Por que reduzir as vagas da pós-graduação? A única forma de termos direitos é transformando o orientador em patrão?

A profissionalização do cientista não só não melhora em nada a pós-graduação brasileira, como piora bastante, na medida em que restringe o acesso apenas aos contratados (indicados). Trata-se de uma velha visão: “somos poucos, mas somos bons”, que permeia a cabeça daqueles que são contra a expansão do ensino superior (incluindo a pós-graduação), pois acreditam que isso vai afetar a qualidade da formação. O que afeta a qualidade não são a expansão e popularização do acesso à universidade, mas a falta de investimento em estrutura e a pouca contratação de quadros qualificados. Consideramos um enorme avanço a recente expansão da pós-graduação e defendemos que é preciso expandir muito mais, interiorizando e combatendo assimetrias, para promover desenvolvimento regional, aproveitando a riqueza do território e do povo brasileiro.

A proposta define ainda a dissociação entre as carreiras de docente e de cientista: um dá aula e
 outro faz pesquisa. Considero tal proposição um empobrecimento das duas atividades. Em um ambiente acadêmico, a dissociação entre ensino e pesquisa é arbitrária, artificial e um prejuízo tanto para a pesquisa quanto para a docência.

A proposta de profissionalização apresentada pela professora pode afetar também outro fator que defendemos com veemência: a diversidade da formação na pós-graduação. Não se pode olhar para a pós-graduação a partir de uma única área do conhecimento, nem voltada a um único tipo de profissional, é preciso compreender a complexidade e riqueza do nosso sistema
, que forma quadros qualificados não apenas para a docência/pesquisa no ensino superior, mas também para pesquisa aplicada na indústria, para a gestão (pública ou privada), para a educação básica e para atuação em diversas áreas na sociedade, contribuindo com a formação onde quer que o indivíduo decida (ou consiga) trabalhar. Penso que o debate que é urgente é a inserção dos recém- mestres e doutores no mercado de trabalho.

Além disso, em muitas áreas não há como determinar as “horas trabalhadas”, pois não existe laboratório. A pesquisa é feita em bibliotecas, salas de estudo, em campo (seja com entrevistas,
surveys, pesquisa etnográfica, revisão bibliográfica ou qualquer outro método), e até mesmo em casa. 

Acrescenta-se, ainda, o argumento de que não sermos reconhecidos como trabalhadores nos expõe àquela famosa pergunta: “mas você só faz pós-graduação e não trabalha?”. Tal situação demonstra uma incompreensão das nossas atividades pelo senso comum, mas
, será mesmo que esse é o principal problema que temos? Tenho convicção de que o principal problema, que aflige as centenas de milhares de pós-graduandos no país, é o fato de não termos direitos estabelecidos que nos permitam uma condição de vida satisfatória para o exercício das nossas atividades – e acredito que não é necessário criar uma profissão (com todos esses malefícios que ela irá acarretar) para tanto.

Fazemos, então, a última sequência de perguntas: a quem interessa a profissionalização dos cientistas? Ao pós-graduando? Ou ao cientista sênior, que terá auxiliares que ele poderá selecionar, definir as atribuições e facilmente demitir?

Por fim, cabe dizer que o conjunto de deveres dos pós-graduandos já está muito bem estabelecido em diversas normas e regulamentações, inclusive, no caso dos bolsistas, no contrato de bolsa. Cabe estabelecer, institucionalizar e divulgar DIREITOS. Somos profissionais que decidiram estender seu período de formação, precisamos ser valorizados enquanto tal: uma categoria híbrida que produz pesquisa e estuda, que desenvolve artigos, dissertações, teses, inovações, projetos, seminários, participa de congressos, feiras, colóquios, assiste aula e ainda se vira com uma bolsa (quando tem) desvalorizada em pelo menos 50% do seu valor real ao longo da história. Queremos melhores contratos de bolsas e bolsas para todos. Queremos um valor deste benefício que dê tranquilidade para o desenvolvimento da pesquisa e informação para ter acesso aos direitos já existentes. Queremos, enfim, direitos equivalentes aos deveres que já temos.

O que a ANPG defende, portanto, e vem discutindo com Associações de Pós-Graduandos de diversas universidades do Brasil, é a criação de um Estatuto de Direitos do Pós-Graduando que defina claramente regras da relação Orientando/Orientador e estabeleça um conjunto de direitos, tais como taxa de bancada, auxílio-tese, auxílio insalubridade e periculosidade (para aquelas atividades que necessitam), férias, valorização permanente das bolsas de pesquisa, assim como sua universalização, e que esse tempo possa contar também na previdência – como já acontece para quem serve ao Exército, por ser considerada uma atividade de interesse da soberania. Dessa forma, conseguimos abarcar os diversos campos da pós-graduação e dar conta das diversas expectativas de quem se dispõe a fazer pesquisa. É uma proposta em construção e que será aprovada no nosso 39° Conselho Nacional de Associações de Pós-Graduandos,
a ser realizado nos dias 25, 26 e 27 de outubro, na cidade de Ouro Preto (MG). A partir daí, iniciaremos a luta para que seja aprovada no Congresso Nacional.

Convidamos todos os pós-graduandos para construírem conosco uma proposta que realmente tenha como foco a valorização do pós-graduando no Brasil. Participe!

* Por Luana Bonone e Roberto Nunes Junior

Luana Bonone é presidenta da ANPG e mestranda em comunicação e semiótica pela PUC-SP

Roberto Nunes Junior
é diretor de comunicação da ANPG e mestrando em filosofia pela Universidade Federal Fluminense