A introdução do texto científico

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O trabalho monográfico em geral parece um bicho de sete cabeças. Não é. Monografias, artigos, dissertações e teses em geral são descritos como gêneros textuais somente objetivos. Há muitos mitos sobre a objetividade científica, mas o fato é que esses mitos provocam a ideia de textos sacerdotais, que carecem de escritas absolutamente sagradas, como se para escrever um texto científico fosse necessário nascer de novo. É preciso desconstruir as dificuldades que separam os estudantes do texto científico.
Um dos problemas desse tipo de gênero é sua introdução. Muitas teses e dissertações sequer se preocupam com a própria noção de introdução enquanto premissa fundamental de um texto. Algumas aprofundam ideias polêmicas, mas a quase totalidade delas (ao menos as por mim consultadas) não apresenta a relação Quem sou eu/O que eu desejo fazer com o trabalho e qual a minha relação com ele/O que é o trabalho.
            É fundamental que se entenda que os objetivos e hipóteses da pesquisa científica só podem advir dessa explicação ao leitor. Uma pesquisa científica não brota do nada. É muito difícil (e eu, como revisor textual, tenho visto muito isso) ler um texto sem que o próprio texto apresente quem é o leitor e de que contexto histórico e social ele parte. Isso é a própria honestidade como ponto de partida do texto científico. Por isso, Quem sou eu é a própria noção do indício de autoria do texto. Uso esse termo, aqui retirado do linguista Sírio Possenti, da UNICAMP, para que se reconheça um dos primeiros mitos da objetividade de um texto científico: a noção de que, para ser objetivo e “isento”, o texto científico precisa esconder o autor. É um verdadeiro teste de fé da objetividade fingindo neutralidade e isenção. É preciso que se saiba (e nós, cientistas da linguagem já temos esse aspecto como concepção científica há décadas) que não existe neutralidade e imparcialidade no texto. Se você estiver produzindo qualquer texto que seja (oral, escrito, verbal ou não-verbal), e mesmo apagando o sujeito do texto, esse sujeito vai aparecer na dimensão de texto que chamamos lócus de enunciação. Por enunciação a gente chama o processo em que a dimensão de autoria, texto e acontecimento se encontram para que o enunciado (seja ele o texto ou um recorte do texto) seja produzido. Por isso, a neutralidade, imparcialidade e isenção no texto científico são mitos muito difundidos, mas com pouca serventia e reconhecimento científico.
Para tanto, é preciso dizer ao seu leitor quem é você. Em segundo lugar, você precisa ser capaz de introduzir ao seu leitor qual a sua relação com o trabalho de pesquisa e o que você deseja com ele. Esse aspecto é fundamental para o que chamamos de justificativa do texto. Tenho lido muitas justificativas que falam de tudo, menos da relação do autor com a pesquisa e o que se deseja com ela. Se você pesquisa um componente da natureza, um fato histórico ou uma relação puramente teórica, se esse estudo é empírico e experimental, histórico, etnográfico, de análise de dados, pesquisa-ação ou teoria fundamentada nos dados, você precisa dizer ao leitor qual a relação entre o autor, nesse caso você, e o texto. Por isso, uma justificativa bem feita é digna de discussão e aprovação numa das etapas das bancas de seleção de candidatos aos mestrados e doutorados, mas também nas bancas de qualificação e defesa desses cursos. Sem dizer isso o leitor ,não se  é possível localizar seu texto no contexto de produção e a relevância do impacto dele para a sociedade. Talvez derive daí a dificuldade de massificação dos textos científicos no Brasil, de modo que até setores supostamente menos leigos da sociedade tenham dificuldade de entendimento de textos que se perdem somente em terminologias e nomenclaturas, com pouca interação com a realidade. Esse é o papel da introdução de um texto científico, de maneira que ela convide o leitor a continuar navegando pelas laudas de fabulação teórica e metodológica até chegar aos dados, análises e comparações.
O último estágio da introdução, o que é o trabalho, depende dos dois anteriores. Esse, no entanto, também tem suas peculiaridades tipológicas. Ou seja, ele carece de uma escrita com tipologia textual localizada. Em geral ele tem objetivos (geral e específico), hipóteses (ou assertivas, resultados esperados etc.). A escrita desse item precisa dar conta das características amplas da pesquisa, de modo que o texto precisa ser configurado para dar conta de um percurso que vai do universal para o particular. Isso não significa que eu concorde com esse percurso, mas que é aquele geralmente utilizado e respeitado pela cristalização do status quo acadêmico. O Objetivo geral precisa ser o mais claro possível e ser guiado através das perguntas/questões de pesquisa. Ou seja, a pesquisa científica parte de indagações localizadas no mundo e isso só fica claro para o leitor, seja ele especializado ou não, quando você diz para o mesmo quais foram as perguntas que guiaram a sua escolha para a pesquisa. A partir desse guia, o objetivo geral e os específicos são desdobramentos de seu questionamento inicial. Em geral se utiliza o verbo investigar para introduzir a ideia de uma pesquisa elaborada num processo de investigação.
No Brasil é comum existirem outros verbos no infinitivo para os objetivos. Analisar, interrogar, averiguar, observar são alguns dos muitos comuns que dividem pesquisadores, de banca a banca, de grupo a grupo. Ainda não existe um total consenso e é preciso que você consulte trabalhos dos pares que vão lhe avaliar para saber o estilo linguístico utilizado por essas pessoas. Trata-se aqui da relação entre estética e prática. Ou seja, a regularidade é adaptável e este texto não é uma gramática que vai regular a sua escrita, mas é uma dica de onde partir na escrita do seu texto.
A Hipótese também divide pesquisadores. Cientistas que fazem pesquisas qualitativas, com toda razão, não gostam da hipótese, por sua tradição nas ciências naturais e seu entendimento como guia dos resultados previsíveis, e muitas vezes combinados, da pesquisa científica. É preciso também debater com seus pares, em sua área de interesse. Um estilo de hipótese aceitável é aquele que enxerga o resultado que se espera da pesquisa e de seus impactos, sem fabular valores complexos e polêmicos, mas isso não é regra. Há hipóteses de todo o tipo e em cada área as pessoas enxergam resultados de diversas formas. A pesquisa científica é muito complexa e cada área tem seus significados para o que é resultado de uma pesquisa aprofundada.
Portanto, é preciso muita atenção nesse item fundamental em um trabalho científico que é a introdução. Embora pareça um bicho de sete cabeças, é a realidade, o uso demasiado de nomenclaturas e terminologias já na introdução (como quem quer afastar qualquer leitor não especializado do texto), que faz o texto científico se parecer uma figura acrítica. Por isso, objetividade no texto não quer dizer clareza, e nem sempre quem é objetivo é claro.

Gabriel Nascimento é linguista, mestre em Linguística Aplicada pela UnB e doutorando em Letras pela USP. É autor de artigos científicos mais de uma dezena de periódicos, na área de produção textual e ensino-aprendizagem de línguas, e de dois livros: “O maníaco das onze e meia” (Editora Multifoco) e “Este fingimento e outros poemas” (Editora García). É Secretário-geral da ANPG.