Aliar pós-graduação e maternidade: uma árdua tarefa

carteira de estudante

Screenshot_20180110-184040
A pós-graduanda Vanessa Clemente Cardoso e sua filha no meio de livros e brinquedos

Fazer uma pós-graduação é uma batalha: uma enorme quantidade de livros para ler, pesquisa a ser feita, horas e mais horas para escrever e ainda se “requebrar” com o valor da bolsa paga para mestres e doutores – que vale salientar, não tem reajuste desde 2012. Agora imagina tudo isso aliado a uma maternidade. Parece impossível? Mas não é.
Para Vanessa Clemente Cardoso, aluna de doutorado, conciliar maternidade e pós-graduação é uma tarefa complexa. “Entre as múltiplas dificuldades que encontramos, com certeza a falta de controle do tempo diante dos prazos a serem cumpridos é a maior, pois por mais que tenhamos um cronograma de pesquisa, o exercício da maternidade sempre nos prega surpresas. Não há flexibilidade para cumprimento dos prazos nos programas de pós-graduação considerando a realidade da mãe. Além disso, temos as variadas noites mal dormidas que proporcionam dificuldades de concentração, sono e exaustão. Também temos que cumprir com as exigências do programa, publicando artigos e participando de eventos. Escrever ou revisar um artigo fica mais difícil, pois sempre somos interrompidas, e os eventos acadêmicos não possuem nenhuma dinâmica pensando na mãe que não tem com quem deixar o filho”, explica.
Para lidar com esses contratempos, Vanessa criou um grupo no Facebook chamado “Mamães na pós-graduação”. “Durante a gravidez participei de muitos grupos de mães nas redes sociais. Entretanto, sempre senti falta de estabelecer um diálogo com mães que vivessem uma realidade mais próxima da minha. Ao pesquisar, descobri que não havia um espaço para mães que cursavam a pós-graduação. Criei o grupo no dia 11 de novembro de 2017 e, em poucas horas, ocorreram várias solicitações para participação, seguidas de postagens de belíssimos relatos de superação e fotos de mães”, conta.
Atualmente, o grupo “Mamães na pós-graduação” possui mais de 500 integrantes que cursam mestrado, doutorado ou pós-doutorado. “Temos mães de todas as regiões do Brasil, de instituições públicas e particulares, bolsistas CAPES, CNPq e não bolsistas. Além disso, fui surpreendida com solicitações de mulheres que estão na pós-graduação, mas que tinham receio de terem filhos e queriam participar para saber como se dava a prática da maternidade ao lado da pesquisa científica”, diz Vanessa. Ela acrescenta que, hoje, o “Mamães na pós-graduação” também tem a participação das fundadoras de outros grupos como o “Parent in Science”, o “Movimento Mulheres Acadêmicas – Gênero e Ciência” e o “Coletivo MãEstudante/UFSC”.
Enfrentando o preconceito
Para Vanessa e demais mães pós-graduandas, uma coisa é clara: o preconceito contra a mulher dentro do ambiente acadêmico é ainda mais exacerbado quando ela se torna mãe. “Nenhum homem é questionado quando se torna pai. Nunca ouvi um relato sequer de homem que tenha parado sua pós-graduação pois não conseguia conciliar filho e pesquisa, ou que tenha sido abordado por professores para não ter filho. Durante a minha gestação, foi aberto um concurso público para provimento de vaga de professor substituto em uma instituição de ensino superior. Minha orientadora estava me incentivando a prestá-lo. Lembro que comentei com algumas professoras universitárias e uma delas me disse: ‘querida, vá com roupas largas para não evidenciar a sua barriga, pois infelizmente há chances de reprovação pelo fato de você estar gestante’. Acabei não me inscrevendo”, conta Vanessa.
A criadora do grupo “Mamães na pós-graduação” também relata alguns absurdos que ouviu após o nascimento de sua filha. Ouvi coisas como: “que horror, teve filho durante o doutorado”. É lógico que isso não aconteceu só comigo. No grupo temos mais relatos, inclusive de mães que tiveram a nota reduzida, foram ameaçadas de perderem a bolsa de pesquisa por terem engravidado e que não tiveram o direito à licença-maternidade”, ressalta a doutoranda.
Esses tipos de relatos só comprovam a necessidade de combate ao preconceito, um problema estrutural que precisa ser atingido em seu cerne para ser vendido. “Se as crianças são o futuro da nação, como podemos negar a sua existência dentro da academia e distanciar ou vedar as mães dentro desse ambiente? Creio que a sociedade só tem a ganhar com mais mulheres na ciência e crianças convivendo com essa realidade”, complementa Vanessa.
Como combater o preconceito?
O Brasil ainda é uma sociedade patriarcal marcada pelo machismo. “É preciso superar esse modelo. Precisamos falar mais sobre maternidade e ensino superior. Necessitamos de políticas públicas que sejam efetivas para a permanência de mulheres nas instituições superiores”, diz Vanessa.
A presidenta da ANPG, Tamara Naiz, ressalta que as mulheres têm sido fundamentais para os avanços e para o bom desempenho da Ciência brasileira. “Nós sabemos que 90% das pesquisas realizadas no Brasil são feitas no âmbito da pós-graduação e metade desses pós-graduandos são mulheres. Essas mulheres superam e lutam contra todos os empecilhos de uma sociedade machista, inclusive no âmbito acadêmico, e por vezes elas têm que optar entre ser mãe ou pesquisadora. A ANPG acredita que essa escolha é absurda e um tremendo atraso. É por isso que lutamos para garantir a existência de mecanismos de proteção para que a mulher exerça plenamente todos os seus direitos em um ambiente seguro”, afirma Tamara.
Para Vanessa, as universidades brasileiras carecem de uma estrutura física para atender uma demanda que existe e que não pode ser negada. “Não há fraldários. Quando existem, não são acessíveis a todos. A maioria das instituições de ensino superior não possuem creches ou algum programa de apoio psicológico para as mães”, observa. Ainda de acordo com a doutoranda, além de uma melhor infraestrutura nas universidades, as mães pós-graduandas podem conciliar de uma melhor forma a maternidade e as pesquisas com o apoio dos pais e da família. “Somos forçadas cotidianamente a escolhermos entre a carreira ou filhos, e os relatos presentes no grupo “Mamães na pós-graduação” provam que é possível conciliar. Entretanto, é importante percebermos que não precisamos sermos fortes o tempo todo, mas que necessitamos de uma rede de apoio, de pais que sejam presentes na criação e dividam essa tarefa. Temos mulheres guerreiras que trazem nesse adjetivo uma realidade sobrecarregada, enquanto homens seguem suas vidas normalmente”, aponta.
Licença-maternidade: o primeiro passo para uma conquista maior
A ANPG sempre teve como bandeira histórica a licença maternidade na pós-graduação e comemorou com todas as mulheres essa conquista no começo de dezembro de 2017.  As novas regras transformam em lei uma prática que vem sendo adotada por algumas das principais agências de fomento a estudos e pesquisas no Brasil. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) já possuem normas internas que concedem essa prorrogação a bolsistas que recebem o auxílio por 24 meses ou mais (mestrado e doutorado).
“Muitas mães não tiveram licença-maternidade concedidas pelos seus programas de pós-graduação, de tal modo que a aprovação da lei foi muito comemorada, pois foi vista como uma possibilidade de um futuro diferente. Esperamos que, com a aprovação da lei, as universidades a cumpram de modo amplo tanto para bolsistas quanto para não bolsistas e que o processo seja menos burocrático”, diz Vanessa.
Uma história encorajadora: conheça o relato de Vanessa Clemente Cardoso.
“Sou aluna do doutorado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Na mesma instituição cursei a graduação (2007-2010) e o mestrado (2011-2013). Trabalho com uma coleção de livros didáticos da década de 1960 denominada História Nova do Brasil, elaborada por estudantes sob a orientação de Nelson Werneck Sodré. A obra possuía uma dimensão política e, com a instauração do regime militar, seus volumes foram queimados e proibidos e seus autores, alvos de perseguição. Minha pesquisa busca analisar a escrita da História do Brasil pela elite intelectual dos centros de formação do pensamento nacional presentes na coleção e a análise dos Inquéritos Policiais Militares resultantes da perseguição dos autores durante a ditadura militar.
Ingressei no doutorado em 2015 com bolsa de pesquisa pela CAPES e engravidei em 2016. Durante a gestação, finalizei o estágio docência e auxiliei a minha orientadora na organização de um evento acadêmico. Tive licença-maternidade de 4 meses concedido pela CAPES e pelo meu Programa de pós-graduação, embora a lei ainda não tivesse sido aprovada.
Minha filha nasceu no início de 2017, quando cursava o terceiro ano. Li muito sobre puerpério e exterogestação, mas a prática foi mais difícil. Os primeiros meses foram exaustivos, não consegui ler absolutamente nada da minha pesquisa. Chorei muitas vezes acreditando que nunca mais conseguiria retomar as leituras e sentia falta de ser a mulher que eu era antes. Hoje me redescobri e sei que a maternidade me possibilitou amadurecer e perceber que sou capaz de coisas que nem imaginava”.