Corporativismo: um problema só da medicina?

carteira de estudante

Jouhanna do Carmo Menegaz¹

Na semana passada episódios envolvendo cenas de hostilidade e preconceito para com os médicos estrangeiros chegados ao Brasil por meio do programa Mais Médicos chamaram a atenção dos brasileiros transformando uma pauta de categoria, até então vista como justa e de interesse coletivo por boa parte da sociedade em questão corporativa que perdeu a medida. Não vou neste texto emitir opinião sobre este fato em si, mas sobre o que entendo ser o pano de fundo destas e outras recentes manifestações relacionadas ao trabalho e cuidado em saúde. 

Já faz um tempo que tenho pensado sobre estas questões, e essas reflexões só tem feito aumentar com as reações da categoria médica sobre o programa do Ministério da Saúde e com as reações das outras categorias profissionais sobre ato médico. A única e triste conclusão a que pude chegar é a de que nossa pauta hoje é a disputa de espaço, a determinação de quem dita as regras, de quem é o ‘maestro’ do cuidado. O corporativismo impera e nossa disputa não se encerra nos serviços, mas transcende-os e orienta a formação, a produção de conhecimento, mantendo-nos sempre em busca dos elementos e tecnologias que darão às nossas categorias hegemonia; que justifiquem nossa permanência e relevância como profissional de saúde. Gostemos ou não de admitir a verdade, esta não é uma realidade apenas da categoria médica, mas uma dinâmica de todas as categorias profissionais. Com muita certeza, colegas, afirmo que isto não serve aos interesses da população e do Sistema Único de Saúde (SUS). 

Não serve, mas somos ensinados, em maior ou menor medida, desde o primeiro dia da graduação a honrar e defender nossa categoria acima de tudo. A lutar por espaço, por autonomia e este entendimento é cotidianamente reforçado pelas nossas entidades de classe. Nesta lógica, o outro é visto na maioria das vezes como inimigo e não nos damos conta do prejuízo disso, afinal, isso nos é ensinado antes de tudo, inclusive, antes  mesmo dos princípios doutrinários do sistema único de saúde. Entendemo-nos e constituímo-nos corporativos antes que possamos compreender a dinâmica da formação em saúde expressa nas diretrizes curriculares, estas baseadas em competências que unificam o trabalho em equipe multiprofissional. Nós não trabalhamos nem nos articulamos juntos. No máximo, cumprimos cada um com suas atribuições. 

Há quem defenda que isto não está de um todo (ou nada) errado, uma vez que, quando você se torna um profissional, é assim que o jogo da sobrevivência funciona. Pergunto se é necessário e pra que serve mesmo jogar este jogo. Pergunto ainda se somos de um todo e de fato superiores à categoria médica na compreensão do trabalho em saúde. Porque também não trabalhamos articulados aos demais profissionais. Muitas vezes no discurso defendemos o SUS e o trabalho em equipe, mas na prática as questões corporativas também nos são também as mais caras e mais importantes. Criticamos o corporativismo médico com um corporativismo defensivo, porque na essência invejamos a unidade médica, afinal eles sempre conseguem tudo que querem. Precisamos mesmo disso? Os valores particulares de nossa profissão, descolados do trabalho coletivo, serão os valores que orientarão nossa prática profissional de uma vida?

Todos os profissionais, independentemente de sua categoria, de sua origem social, necessitam ser valorizados, bem remunerados, ter condições dignas de trabalho, de exercer sua função. Esta não deve ser uma prerrogativa de uma categoria e não devemos querer que seja, nem que esta categoria seja a nossa. Entendo que estamos frente à urgência na revisão de nossas compreensões sobre profissão, trabalho, cuidado, sobre a finalidade primeira de nossa atuação. Precisamos encontrar elementos de unidade e semelhança e rumar na direção de uma atuação para além de nós mesmos ao invés de nos digladiar e esperar pela próxima falha do outro. Posso estar sendo utópica, querendo o impossível, mas não é isso que dizem que nos faz sempre caminhar?

¹ Jouhanna é mestre em enfermagem, doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina e secretária-geral da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG).