Pressão por pesquisa aplicada estrangula a ciência, diz Nobel

carteira de estudante




Martin Chalfie esteve no Brasil em maio deste ano, para participar da reunião da Sociedade Brasileira de Química. A entrevista concedida à Folha Online é reproduzida abaixo.

Pressão por pesquisa aplicada estrangula a ciência, diz Nobel

RAFAEL GARCIA
da Enviado especial a Águas de Lindoia

Chalfie ganhou o Nobel, em conjunto com Osamu Shimamura e Roger Tsien, por descobrir como usar a GFP, uma proteína luminescente de águas-vivas, para marcar a ativação de genes.
Em entrevista à Folha, ele explica por que não imaginava de cara que sua técnica ganharia tantas aplicações, mas se entusiasmou com o trabalho mesmo assim.

Folha – Qual é o assunto da sua palestra aqui?

Martin Chalfie – O título da palestra é "GFP iluminando a vida". O subtítulo, que não contei a ninguém ainda, é "Aventuras em ciência não-translacional". Essa é uma expressão que inventei, então vou explicar.

Há uma pressão muito grande para justificar a pesquisa científica com supostas implicações imediatas que ela pode trazer. Pessoas têm defendido que deveria haver muito mais pesquisas que apliquem informação diretamente ao combate a doenças. Em outras palavras: "traduzir" ["translate", em inglês] o que foi feito no laboratório para a clínica.

O problema é que a maioria das pessoas que eu vejo defenderem isso querem que absolutamente tudo seja translacional. Agora, se você não tem informação básica para traduzir, não sobra nada para fazer.

Minha apresentação é, em parte, um apelo para que não esqueçamos o fato de que, para quase tudo o que sabemos sobre medicina, há uma sustentação de ciência básica que é muito importante.

A política científica americana está esquecendo a ciência básica, então.

Acho que há alguns erros. Quando as pessoas pressionam pela pesquisa translacional, às vezes elas assumem que nós já aprendemos o suficiente. Para mim e para a maioria dos meus colegas, porém, isso é uma falácia.

Quero mostrar como uma coisa maravilhosa [a GFP] foi encontrada acidentalmente por alguém pesquisando questões básicas sobre águas-vivas, e como ela teve implicações e se tornou útil para estudar doenças e para desenvolver biotecnologia.

Além disso, muitas pessoas pressupõem que pesquisadores de ciência básica não pensam nas implicações do que fazem. Isso é falso.

Acho irônico que nos EUA haja esse apelo por pesquisa translacional, e pelo que vejo, quando treinamos pessoas nas faculdades de medicina, a quantidade que eles aprendem do básico está encolhendo. Ao mesmo tempo, querem que a ciência básica seja aplicada ao combate a doenças. É uma contradição.

Quando o pacote de estímulos do governo Obama foi lançado nos EUA, os NIH [Institutos Nacionais de Saúde] receberam um bocado de dinheiro. A primeira coisa que fizeram com parte desse dinheiro foi abrir uma disputa pelas chamadas "Challenge Grants" [bolsas desafio]. Essas bolsas eram maravilhosas e cobriam cem diferentes tópicos. O problema é que, das cem áreas que eles escolheram, apenas duas não eram translacionais.

Eu não sou contra pesquisa aplicada, mas não acho que ela deva suplantar a ciência básica numa escala de 92 contra 2.

Uma coisa inusitada sobre seu trabalho que lhe rendeu o Nobel é que ele não é sua linha de pesquisa principal.

É estranho receber o reconhecimento por algo que era uma parte relativamente pequena da minha carreira. De vez em quando ainda faço algo sobre GFP, mas é mesmo um trilho secundário. No nosso laboratório, estávamos tentando descobrir quais células estão ativando os genes nos quais estávamos interessados e, quando ouvi falar da GFP, me dei conta que elas poderiam ser uma maneira maravilhosa de fazer esses experimentos.

A maneira como a maioria dos cientistas trabalha é a seguinte: eu tenho uma ideia e vou atrás dela. Mas, se no meio dos experimentos, algo diferente aparece, eu vou seguir aquela pista.
Quando recebemos verbas, o que temos não é um contrato, é uma bolsa.

Em um contrato, prometemos fazer A, B, C, e temos de fazer. Minha visão sobre como bolsas devem ser é dizer: "neste momento, acredito que a resposta para essa questão seja fazer A, B e C".

Mas se eu fizer A, e descobrir depois disso que é mais importante fazer D e E em vez de B e C, o financiamento precisa lhe conceder a liberdade de seguir suas ideias.

Se eu tivesse a ideia de usar a GFP como marcador e tivesse de ter escrito um contrato para obter uma verba, eu teria levado nove meses, reclamariam que eu não tinha dados preliminares e não saberia se iria funcionar.

Mas nós nunca tivemos de escrever um pedido de verba para obter o financiamento que usamos para produzir a GFP. Ela era parte da verba geral dos NIH que eu tinha para meu laboratório, e eles ficaram muito felizes de eu ter feito esse trabalho.

Douglas Prasher, seu colega que isolou o gene da proteína GFP, não ganhou o Nobel, abandonou a ciência e vive como motorista de vans hoje. Vocês chegaram a conversar depois do prêmio?

Ele foi um dos meus convidados na entrega do prêmio. Eu acho que ele poderia, sim, ter sido incluído na lista do prêmio, e o fato de ele ter abandonado a ciência depois é irrelevante. O problema, na verdade, é a regra de que cada Nobel só pode ser entregue a no máximo três pessoas. Eles tiveram de discutir a quem dar o prêmio e escolheram eu, Tsien e Shimomura. Agora, Douglas realmente fez a peça chave do projeto.

Além disso, é preciso olhar as razões pelas quais Douglas saiu da ciência. Antes do meu estudo sobre a GFP, o campo de estudos da bioluminescência não era muito grande. Era difícil conseguir dinheiro para essas pesquisas e, quando Douglas saiu do pós-doutorado, não tinha como se sustentar como pesquisador independente.

Depois disso, ele se mudou para o Alabama para trabalhar na Nasa. Ele estava fazendo ótimas pesquisas lá, mas no começo da administração Bush o presidente disse que mudaria a ênfase das pesquisas para mandar astronautas de volta à Lua. Muitas linhas de pesquisa foram encerradas imediatamente para que os cientistas pudessem ter tempo para atender à vontade do presidente. Algumas pessoas perderam seus empregos, e creio que Douglas Prasher tenha sido uma delas.

Ele então se viu em um dilema. Huntsville, onde ele vivia no Alabama, não tem muitos outros empregos para cientistas fora da Nasa. Antes disso, quando ele se mudou para lá, foi muito difícil para a filha dele, que teve problemas para mudar de escola. E no Alabama, ele perdeu o emprego bem na época em que ela estava terminando o ensino médio. Então, desta vez, ele tomou a decisão de ficar na cidade, porque é uma pessoa incrível. Fez isso porque não queria abalar a vida de sua filha de novo, e deu um jeito de arranjar um emprego qualquer. Esse é o Douglas.

Muitos prêmios Nobel de Química têm ido para estudos que alguns cientistas qualificariam, na verdade, como biologia molecular. Talvez o problema seja a falta de um Nobel de biologia geral. É o caso do seu trabalho?

Bom, a razão pela qual não existe um premio para a Biologia é certamente porque o prêmio de Fisiologia e Medicina foi muito usado no passado para premiar biologia em geral. O que está por trás do prêmio de Crick e Watson, que ganharam o Nobel de Medicina e Fisiologia em 1962 [pela descoberta da estrutura do DNA]? Aquilo deveria ser um prêmio de química, mas era muito importante para a fisiologia, para a medicina e para a biologia. Houve alguns prêmios que foram para moléculas, mas não foram de Química. Muitos prêmios de Química foram dados a pessoas cujos trabalhos se relacionam a processos biológicos. A bioquímica é uma área que tanto a química quanto a biologia alegariam possuir.

Para mim, foi uma surpresa ganhar o prêmio de Química. Pelo que sei, agora as pessoas no departamente do Química da Universidade Columbia querem que eu seja parte do instituto deles. (Risos.) É uma coisa divertida. Gosto de estar aqui para falar no encontro da Sociedade Brasileira de Química.

O sr. ainda está trabalhando com as células responsáveis por tato e sensações mecânicas? Que questões está buscando resolver?

O trabalho que tenho feito no meu laboratório desde o meu pós-doutorado na Inglaterra e depois, quando vim para a Columbia em 1982, envolve questões que ainda estou abordando hoje. Nós as escolhemos porque podemos produzir indivíduos mutantes desse pequeno verme com que trabalhamos [C. elegans] que são incapazes de sentir toque.

Há duas maneiras com que uma mutação poderia causar isso. Uma delas seria ao interferir com o desenvolvimento do animal, de forma que as células responsáveis por esse sentido não sejam produzidas ou sejam produzidas de modo incorreto. E os genes que fariam esse desenvolvimento sair errado nos dariam uma ideia sobre como o desenvolvimento ocorre — como células diferentes como as de músculos, pele e neurônios surgem e se distribuem.

O estudo sobre esses genes ainda está prosseguindo e ocupa grande parte do nosso trabalho.

O outro tipo de gene que poderia sofrer mutações e fazer um animal ficar insensível ao toque seria um que, ao ser alterado, deixasse de produzir um componente crítico responsável por esse sentido.

Os biólogos têm uma noção boa sobre quais moléculas permitem pessoas e animais captarem a luz. Nós conhecemos a molécula rodopsina, presente nos olhos, há mais de 125 anos. É essa molécula que capta a luz e desencadeia o processo que nos permite ver.

Mas isso não é verdade para sentidos como a audição e nossas percepções de equilíbrio, referência corporal e vários tipos de tato _forte, leve ou sensação de textura e vibração. Todos esses sentidos são gerados por células diferentes em nossa pele e em outros lugares. E todos esses sentidos são estimulados de alguma maneira pelo movimento mecânico: o movimento faz essas céluluas mandarem sinais elétricos ao cérebro.

O que todas essas coisas têm em comum é que a biologia não tem a menor idéia de como elas funcionam. Então essa é última grande questão a responder sobre como nosso corpo sente o mundo ao redor.

Nós já descobrimos a primeira resposta para isso, uma molécula que produz esse sentido. Estamos tentando descobrir agora como ela funciona, se há outros componentes necessários e como esse aparato opera no nível molecular. Em outras palavras: o que acontece com uma célula quando ela é tocada.

O sr. ainda mantém colaboração científica com sua mulher? Em seu trabalho original sobre a GFP há uma citação a um estudo dela.

Sim, mas na verdade nós nunca assinamos um estudo juntos. Nós conversamos muito sobre nossos experimentos quase o tempo todo, mas nossos trabalhos seguiram direções diferentes. Na época, precisei citar seu trabalho porque ela fez um experimento crítico, revelando efetivamente que a GFP poderia ser usada para mostrar onde um gene estava ativo.

Eu achava que ela iria exigir parte do prêmio…

Bom, ela já tem a minha parte inteira para ela!

O sr. vai falar para uma audiência com muitos cientistas jovens aqui. Que conselhos vai dar a eles?

Um dos problemas em se receber o prêmio Nobel é que as pessoas pedem conselhos a você. E eu realmente não sei que conselhos dar. Minha tendência é reagir de maneira oposta. Se há alguma lição para extrair de tudo isso é que essas lições não existem. Eu tenho entusiasmo e interesse pelo que faço e me considero sortudo por isso.

Mas eu não acho que exista um caminho claro para se fazer boa ciência. Não dá para dizer a alguém "vá para essa universidade e não para aquela que você será um bom cientista". Às vezes eu escuto as pessoas dizerem sobre algumas habilidades "se você não começar seu treinamento aos cinco anos de idade, não vai conseguir competir". Isso não faz o menor sentido.

Não acho que as pessoas tenham de ter nenhuma atitude em particular, exceto o profundo interesse pelo que fazem. Se você olhar para nós três que ganhamos o Nobel pela GFP, vai ver isso.

Osamu Shimomura é uma dessas pessoas que sempre seguem em frente para fazer o experimento em que estão interessadas. Ele trabalha muito duro. Suspeito que tenha sempre sido um estudante brilhante. E ele é um cientista mais do tipo operário: não vai muito a congressos e se concentra mais naquilo em que está interessado.

Roger Tsien era alguém que ia todo ano a competições científicas quando estava no ensino médio. Ganhou uma delas, a Westinghouse Science Competition. Sempre foi visto como um um cientista talentoso, brilhante e competente desde o início.

Quanto a mim, tomei um caminho diferente dos deles dois. Eu certamente não era estúpido, mas não era o aluno mais brilhante da faculdade. Eu trabalhava duro naquilo em que estava empenhado, mas havia outras pessoas que certamente tinham mais talento e habilidade do que eu e se saíam melhor nas lições.

Acho que isso mostra que não existe um caminho que seja necessariamente o certo para se fazer boa ciência. E prever se o seu trabalho terá reconhecimento e vai ganhar prêmios, então, é impossível. Acredito que meu diferencial seja mesmo o meu entusiasmo para fazer pesquisa.

O sr. ainda tem tempo para atividades fora do trabalho depois de ter ganho o Nobel? Fiquei sabendo que o sr. gosta de nadar e tocar violão.

Estou já há muitos anos sem nadar. Eu deveria voltar porque preciso me exercitar. Mas eu ainda toco violão. Meu pai é violonista profissional e me deu um violão quando eu tinha 12 anos. Então, já faço isso há uns 50 anos. É algo que me dá muito prazer. Nos últimos cinco anos tenho procurado trabalhar um pouco mais com composições, e me divirto com as surpresas que saem daí.

Que gêneros de música o sr. prefere?

Recentemente, depois de me recuperar de um ombro machucado há uns três anos, decidi que eu precisava tomar mais lições, minha mulher descobriu um incrível seminário de violão clássico no verão em Nova York, e eu decidi participar. Era sobre violão brasileiro, e foi a experiência da minha vida! Adorei aquilo.

Na época, um violonista que acabava de obter seu doutorado em composição na Columbia, Arthur Kampela, brasileiro, morava perto de mim, e também pude ter aulas com ele por algum tempo. Eu tentei tocar algumas composições dele, mas eram muito difíceis para mim. Hoje, aprecio muito Villa-Lobos e outros compositores brasileiros e latino-americanos, e posso tocar algumas de suas peças.