Maria Felipa, preta baiana, e a luta pela igualdade racial em nosso país

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Artigo por Gabriel Nascimento*

Eu sou filho de gerações de seres humanos que foram escravizados. Não sou neto de escravos. Ninguém nasceu escravo. Muitos eram reis, foram capturados e dizimados aos montes do outro lado do Atlântico. Falo em primeira pessoa para estar cada vez mais próximo do que longe da condição autor/alteridade a que me destaco.

O tataravô da minha mãe era escravo alforriado. Ele fez parte de uma população que resistiu a quase quatro séculos de escravidão, a qual resultou em milhões de mortos. A escravidão legal no Brasil acabava, e a ilegal se perpetuava. A escravidão combatemos todos os dias. Há mais de 150 anos navios tombeiros cruzavam o oceano Atlântico com carga humana viva. Com a moderna exploração do capital e a busca de expansão para conseguir mão de obra e matéria prima, os países europeus viram na África o seu território iluminado. Foi aí que a pressão internacional sobre o fim do tráfico de escravos pelo Brasil passou a ser a tônica. Foram várias leis que não saíam do papel, sempre defendidas com afinco por movimentos liberais no país. Uma delas, a Lei Eusébio de Queirós, só veio a fazer efeito no fim de escravos porque a Inglaterra, principal interessada no fim do tráfico Interatlântico, prometeu bombardear navios negreiros.

Ainda assim o tráfico não acabou de todo. Finja que você está em 1855, e a lei já está em vigor. Ao atravessar o Atlântico com a carga humana ilegal, o traficante branco encontra ao horizonte a Real Marinha Inglesa. Qual a principal medida a ser tomada? Amarrar a carga humana a redes e atirar ao mar. Isso mesmo. Era assim que nós negros éramos tratados para além da costa.

O Brasil foi um dos últimos países da América Latina a abolir a escravatura. E isso só aconteceu atrasado, no final do século XIX, ao fim de um processo lento e gradativo. A Lei Áurea é uma lei pouco significativa em nossa história. Com um único artigo, objetifica o negro como produto de troca e não apresenta medidas reparatórias. Imagine que você fosse um negro em 1902 e agora não havia mais escravidão formal. Porém, analfabeto e sem documentos, porque nem a Lei Áurea ou alguma medida do império ou da recém República instituiu isso, caminhando de um lado para o outro, o que você faria? Correria para os pés do latifundiário e aceitaria trabalhar, como era antes, a troco de comida e aceitando humilhação.

Essa é a história do negro brasileiro no século XX. Nossa representação religiosa sempre vítima da infâmia, nossas marcas culturais sempre atacadas e criminalizadas, aos poucos nos descobrimos escravos em fazendas de cana de açúcar, café, cacau e soja. Nossa escravidão não acabou de fato. Meus pais trabalharam desde a década de 40 até hoje a troco de nada no campo. Minha mãe nunca teve direitos trabalhistas garantidos. Depois de velho, meu avô precisou acionar a justiça para ser atendido em seus direitos básicos.

A escravidão no Brasil mostra suas marcas dia após dia. A luta para combatê-la é diária. Está desde a PEC das domésticas até o combate ao flagelo que acomete a periferia brasileira. Supostamente livres, nós negros fomos, pouco a pouco, expulsos dos centros urbanos. Tivemos de procurar compatibilização no na zona rural com seus latifúndios improdutivos e nas periferias urbanas. As periferias urbanas receberam com força as populações negras da zona rural ao final do século XX, quando o efeito das crises mundiais chegaram ao país com força. Não por acaso, enclausurados em lugares sujos, sem redes de esgoto, saúde e educação de qualidade, a violência também aumentou. Toda violência é uma resposta. Não por acaso nós negros lideramos os piores índices do país: a população dos presídios e estabelecimentos prisionais gerais, a população de jovens assassinados, a população que, durante a ditadura, morria de fome e que, na década de 90 fazia filas para pegar cesta básica.

No Dia Internacional contra a Discriminação Racial, mais do que a luta contra a discriminação racional: a luta pela reparação histórica. As Cotas representam um passo importante nessa direção, bem como a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Lei 10.639 que institui o ensino de história e cultura afrobrasileira nas escolas. Ainda é preciso destacar o trabalho incansável da juventude, através da criação do Plano Juventude Viva, objetivando combater o genocídio da juventude negra no país.

A luta pela igualdade racial perpassa, sobretudo, o convencimento de que estamos muito longe de uma democracia racial. Nossa demografia, sempre alimentada pelo mito da democracia racial, sempre teve como objetivo negar as desigualdades e silenciar o negro. A vítima tem sempre culpa. Os que se rebelam são alienígenas. O traficante de drogas negro, o aviãozinho, o assaltante. A luta pela igualdade racial perpassa a luta por mais políticas públicas que dialoguem com um país em construção para todos, inclusive a sua maior camada, secularmente marginalizada. Ser negro no Brasil é reivindicar uma identidade que protesta constantemente contra o silenciamento e a naturalização da culpa da vítima. Se a mulher branca feminista tem seus dilemas por ser impedida de sair da vida doméstica para a vida do trabalho formal, os problemas da mulher negra sempre foram outros. Esta sempre esteve no trabalho formal, explorada (inclusive sexualmente), marginalizada, criminalizada. Se as tropas portuguesas foram embora, para a suposta independência do Brasil frente a Portugal, naquele 02 de julho de 1823, com toda a certeza o Brasil deve a Maria Felipa. A capoeirista baiana deu seu sangue pela liberdade do país e é um marco, ainda que desconhecido, da nossa reivindicação da soberania nacional.

Com Maria Felipa, nosso marco maior, lutamos dia após dia contra o silenciamento dos negros em nossa história, historicizando sempre, não a história dos vencedores, mas a história dos vencidos. Não a história dos opressores, mas a história dos oprimidos.

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*Gabriel Nascimento é mestrando em Linguística Aplicada pela UnB, diretor da Associação Nacional de Pós-graduandos e presidente da Associação de Pós-graduandos da UnB
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