Qual é a cor da ciência?

carteira de estudante

eu-e-maria-dajuda
A doutora pela Universidade Alcalá de Henares, Maria D’ajuda e Gabriel Nascimento

Na alfabetização Gabriel queria mesmo é ser empresário. Falava sempre isso com Tia Dene (Adenilce Passos), sua alfabetizadora. “Tia, quando a senhora tiver velha e se aposentar, eu vou ser um empresário rico e vou te ajudar”. Gabriel queria mesmo era ser empresário porque ser empresário era a única forma de triunfar. Na adolescência Gabriel deu uma ajuda voluntária à professora Celinha na pré-escola, escreveu uns poemas e tomou gosto pelo professorar. Na verdade, e diga-se de passagem, Gabriel ia também ser amigo da escola para comer a merenda no recreio, mas não vem ao caso mencionar aqui esses motivos todos. Fato é que ele chegou à universidade, num curso de licenciatura e se tornou professor. Foi lá também que conheceu a ciência. Conheceu, para não mais esquecer, sob a batuta de uma preta, a doutora pela Universidade Alcalá de Henares, Maria D’ajuda, tudo sobre ciência.
O que Gabriel pensava ser ciência? Uma série de gente branca, presa num laboratório fazendo pesquisa experimental. Era o que ele via no Fantástico e no Globo Repórter da TV Globo. Ele viu aquilo a vida toda. Mas a ciência que veria dali em diante não era nada igual o que passava na telinha. Maria D’Ajuda era muito exigente e criteriosa, publicava muito em periódicos e tinha relação com meio mundo das sociedades científicas. Era uma das únicas pesquisadoras negras daquela universidade a ser doutora. Ela nunca falou de racismo explicitamente ou do racismo que sofreu na Espanha, mas aquilo foi sendo arrancado pouco a pouco. Competente, profissional dedicada, ela e Gabriel choraram juntos muitas vezes descobrindo como a vida consegue juntar dois negros numa universidade que no passado pertencia à elite cacaueira. (Parêntesis importante: Uma amiga negra dia desses me contou que foi esperar a ex-ministra negra Nilma Lino num aeroporto e ficou apreensiva porque não portava nenhum papel identificando que ela era a pessoa que esperava a ex-ministra. Ao sair do embarque, sem conhecê-la, a ex-ministra foi ao seu encontro, única negra ali, e lhe abraçou, dizendo: “Pra a gente se ver, a gente só precisa se enxergar”).  A professora Maria D’Ajuda, a que enxergou Gabriel, era uma grande cientista e Gabriel queria ser que nem ela. Consta que ela o ajudou até demais: presentes, dinheiro para ir a congresso e uma bolsa de iniciação científica do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da universidade. Foi ali que Gabriel descobriu de verdade a ciência e pelas mãos de sua igual. Foi ali que Gabriel descobriu que a ciência não tem uma cor só, a dos brancos presos pesquisando em seus laboratórios de pesquisa experimental, mas tem várias cores e a sua cor também ia embelezar a ciência.
No início nem consta que soubesse que a pós-graduação poderia ser seu futuro até conhecer aquela pesquisadora negra. Dali em diante foi um pulo para querer sair publicando em periódicos, resumos e artigos completos em eventos técnico-científicos. Dali foi um pulo para sua entrada na pós-graduação.
Foi dali que Gabriel partiu para refletir a cor da ciência. Os objetos científicos majoritários, ainda acomodados e conformados pelo positivismo, pela racionalidade técnica e pelo angloeurocentrismo, ainda são brancos, mas não precisam ser a vida toda. E não poderão ser com a luta que se firma dia após dia. A superação do racismo não é um desafio para a sociedade em geral só no sentido de combater a discriminação (sua forma manifesta), mas todos os seus elementos em geral. Uma forma de racismo preponderante na ciência é o racismo epistêmico ou científico. No Brasil ele é representado pela teorização do brasileiro cordial, passando por Gilberto Freyre, e sua ideia de harmonia no cruzamento das raças, e por Sérgio Buarque no seu brasileiro cordial. O racismo no Brasil adquire essa faceta cordial e a identidade do povo brasileiro, 52% de negros (pardos e pretos) segundo o último censo geográfico do IBGE, vai sendo subrepresentada, ora pela teoria do brasileiro cordial, negando o racismo e narrando uma suposta democracia racial, ora pela ideia falsamente maculada de miscigenação do povo brasileiro, desde Gilberto Freyre, e interpretada como identidade una. A intelectualidade branca, disfarçando um cânone branco, ainda tentou por vezes chamar nossa identidade de bricolage ou pastiche como gêneros, tentando usar palavras bonitas para tratar a mistura do povo brasileiro rumo ao embranquecimento. O “nem brancos nem negros, todos somos humanos” e o “você não é negra, é morena” são filhos desse movimento. São séculos de brancos intelectuais falando por negros no Brasil e, não que estivessem mal intencionados, chegou a hora de negros falarem por negros. Vozes como Clóvis Moura, Milton Santos e tantas pesquisadoras e pesquisadores negros e negras vieram para dar um basta nessa forma de subrepresentação.
A cor da ciência está mudando. Em mais de uma década de governos populares de Lula e Dilma, a ciência vem tomando outras cores. Pretos e pretas olham para a ciência com outros olhares e questionam cada vez mais a própria ciência. O habitat natural do cientista não é mais só o laboratório ou a universidade, é a vida, onde a teoria passa a existir nas e das práticas, quebrando pouco a pouco a branca epistemologia ocidental que vem promovendo o maior genocídio cultural da história: o silenciamento. A nossa voz, rouca, firme e contundente brota e não quer mais calar e é o cientista que conta que Gabriel, que queria ser empresário para ajudar tia Dene, vem aprendendo a ler de verdade, tia Dene, vem aprendendo a ler a vida.
 
Gabriel Nascimento é doutorando em Letras pela USP, mestre em Linguística Aplicada pela UnB, secretário geral da ANPG.