APOGEEU: Mera caridade

carteira de estudante
Alguma vez você já assistiu ou leu uma matéria de jornal falando sobre algum avanço científico realizado em alguma universidade brasileira e notou que, ao falar do autor desse avanço, o jornal se referiu a ele como "pesquisador", não como "professor"? Normalmente quando isso ocorre o tal pesquisador é um aluno de mestrado ou doutorado naquela universidade.
 
Por APOGEEU*
 
Com a exigência cada vez maior do aumento de qualidade e de eficiência na universidade o trabalho de um professor tem ficado mais e mais corrido. Ele precisa preparar aulas para graduação e pós-graduação, preparar e revisar artigos, participar de comitês científicos, desempenhar funções administrativas dentro da universidade, orientar seus alunos de mestrado e de doutorado e manter-se atualizado sobre os mais recentes desenvolvimentos científicos em sua área de atuação. Tantas tarefas a serem feitas em tão pouco tempo, junto com uma crescente demanda pela publicação de trabalhos (a chamada política do "publique ou pereça"), fazem com que a função de um professor seja cada vez mais a de um líder de grupo de pesquisa do que a daquele velho cientista solitário. Nessa posição de líder, cabe ao professor definir as frentes que serão abordadas pelo grupo e orientar em algumas das decisões de como as pesquisas serão feitas, ficando a cargo de seus alunos (especialmente os de pós-graduação) o papel de desenvolver o estudo em si através de profundos levantamentos bibliográficos, projetos de experimentos, muitos e muitos dias em laboratório e, por fim, a apresentação dos resultados obtidos. Esta situação é tão real que atualmente é considerado quase impossível que um professor tenha relevantes trabalhos de pesquisa sem que ele esteja envolvido com a pós-graduação de sua faculdade. Aliás, nesta mesma noite de domingo em que escrevo este texto, muitos pós-graduandos estão trabalhando arduamente em seus laboratórios ou mesmo em suas casas, realizando experimentos, lendo ou escrevendo artigos científicos, ou preparando aulas que deverão ministrar para alunos de graduação. Provavelmente vários destes futuros mestres e doutores passarão esta noite em claro para conseguir terminar seus trabalhos.
 
No entanto, apesar de todo esse esforço exigido destes pesquisadores, seu trabalho quase nunca é reconhecido como tal pela sociedade. Quando uma pessoa pergunta a alguém "o que você faz?" e ouve como resposta de seu interlocutor que ele faz mestrado ou doutorado a reação mais comum que ela terá é perguntar "mas você só estuda, não trabalha?". Claro, não se pode culpar o "cidadão comum", afinal o meio científico poucas vezes fez questão de se apresentar ao grande público. O triste, porém, é que este mesmo comportamento também é visto onde mais se esperaria alguma forma de apoio e reconhecimento, nas agências federais de incentivo à pesquisa e à pós-graduação. Ao que parece, a CAPES e o CNPq vêem as bolsas pagas aos alunos de pós como ações de caridade, o que pode ser notado no fato de que, apesar de o Governo Federal propagandear o crescimento da participação brasileira na produção científica mundial (feito principalmente sobre as costas dos alunos de mestrado e doutorado), o último reajuste dos valores da bolsa foi feito em 2008, há mais de 3 anos, não havendo qualquer sinalização de aumento nem mesmo para 2012! A situação mostra-se ainda mais grave quando se considera que um aluno de pós-graduação não possui direitos trabalhistas, como previdência social, férias ou décimo-terceiro. O único direito garantido, que é a licença-maternidade, foi conseguido apenas no último ano, após muita luta.
 
As dificuldades iniciam-se logo quando o aluno ingressa na pós: como esta etapa da vida demanda muito trabalho, é comum os professores cobrarem que os pesquisadores de seu grupo dediquem-se exclusivamente a seus mestrados e doutorados, eliminando, assim, a possibilidade de que eles se sustentem através de um outro emprego. Porém, como as agências federais cobram que as universidades ocupem sempre todas as bolsas disponibilizadas a elas, poucas destas podem ser reservadas para os novos alunos. Isso faz com que quando alguém ingresse na pós esta pessoa não tenha quaisquer garantias sobre quando irá começar a receber sua bolsa, ou mesmo se irá recebê-la. A escolha pela dedicação exclusiva à pós-graduação torna-se, assim, um tiro no escuro. Caso o aluno tenha sorte e consiga sua bolsa ele já irá encontrar um valor muito defasado, porém ao longo dos anos a situação irá se tornar ainda mais difícil. Os reajustes de valores realizados são sempre muito esporádicos de forma que, ao final de sua pós-graduação, um aluno de doutorado poderá ter perdido um quarto de seu poder de compra. Esta situação faz com que muitos dos futuros doutores cheguem aos 30 anos sem qualquer patrimônio, dinheiro para emergências ou mesmo contribuição para o INSS. Creio que, com o que já foi exposto, não seja necessário dizer o quanto constituir família é uma decisão difícil durante este período.
 
Concentrando-se apenas em engenharia e tecnologia, cuja falta de profissionais é apontada como um dos atuais limitantes para o desenvolvimento do país, o baixo número de mestres e doutores na área é tamanho que motivou a Comissão de Serviços e Infraestrutura do Senado a recentemente propor uma lei que flexibilizasse a exigência de pós-graduação para professores destes cursos. Também, pudera, por lei o salário-mínimo de uma pessoa formada em engenharia, trabalhando 8 horas por dia, é de cerca de R$ 4.600,00 enquanto que a bolsa de mestrado para a mesma pessoa formada em engenharia é de apenas R$ 1.200,00. Assim, os poucos interessados em fazer uma pós-graduação na área o fazem só por idealismo — de serem professores, de estarem sempre juntos ao limiar do conhecimento ou de ajudarem o país. Isto é insuficiente para o Brasil, que precisa tanto resolver gargalos de infraestrutura e gerar riqueza para resolver seus problemas sociais. Fica claro, portanto, que mantida essa política governamental de desvalorização dos futuros mestres e doutores essa deficiência de pessoal capacitado no país irá se perpetuar.
 
Não apenas para a formação de professores universitário, o maior incentivo à pós-graduação em engenharia e tecnologia é necessário também para que o país possa gerar conhecimento e inovações próprias, deixando de ser apenas um importador de tecnologias. Esta demanda fica ainda mais necessária nesse momento em que indústrias têm migrado de todo o mundo para países com mão-de-obra barata, mantendo-se nacionais apenas os serviços que exigem alto nível de especialização. Esta situação, que começa a ser vista também no Brasil, pode ser observada nos EUA, onde o projeto de dispositivos de alta tecnologia é feito em solo americano mas a produção industrial deles é realizada principalmente na China. Assim, as empresas não inovadoras estão fadadas a serem "exportadas" para outros países. Nas vezes em que buscou investir em pesquisa e desenvolvimento o Brasil teve experiências positivas, como pode ser visto na agricultura, na exploração de petróleo e na aviação. É importante ressaltar que, para cumprir esse objetivo, é preciso atrair para a pós-graduação mais pessoas com alta capacidade, algo que depende muito do aumento do valor das bolsas de pós-graduação e não apenas do aumento do número destas, que é a política adotada pelo Governo Federal e por suas agências nos últimos anos.
 
O aumento apenas do número de bolsas de pós-graduação parece ser parte de uma política que busca colher apenas resultados eleitorais, afinal um aumento no número de inscritos em mestrados e doutorados é muito mais impactante no ouvido do eleitor do que o reajuste do valor das bolsas. Esse mesmo tipo de comportamente pode ser visto no programa Ciência sem Fronteiras, que pretende oferecer 75 mil bolsas para que alunos de graduação e de pós tenham experiências internacionais. Com certeza essa é uma nobre ideia, mas cabe também notar que atualmente já há bolsas disponíveis para esta finalidade que sequer são preenchidas por falta de procura. Sendo o caso, não seria mais adequado para o país que estes recursos fossem aplicados para a melhoria das condições da pós-graduação no país?
 
Apesar de problemas nas políticas da CAPES e do CNPq, certamente muitas das atitudes exigidas para sanar os problemas aqui levantados exigiriam mais recursos para a Ciência, a Tecnologia e o Ensino Superior. Assim, peço aos senhores deputados, que estão no momento preparando o orçamento da União, que pensem sinceramente no Brasil que precisamos para o futuro e quais são as formas como poderemos alcançá-lo. Creio que todos verão o papel crucial que a pós-graduação tem para esse novo país.
 
*APOGEEU é a sigla da Associação de Pós-Graduandos da Engenharia Elétrica da Unicamp.