“Não há saída para a crise sem a ciência no centro da reconstrução nacional”, diz Flávia Calé

Flávia Calé foi reeleita presidenta da ANPG em chapa única, o que demonstra a unidade e a maturidade do movimento de pós-graduandos em deixar diferentes menores de lado para focar nos objetivos principais: defender a vida, a ciência e a democracia.

Passado o 27º Congresso, que demonstrou o respaldo institucional e a capacidade de mobilização da entidade, o site entrevistou Flávia para conhecer os principais desafios da gestão que se inicia e as bandeiras pelas quais os pós-graduandos e as pós-graduandas lutarão no próximo período. Acompanhe.

P: O Congresso teve como motes a defesa da vida, da ciência e da democracia, uma pauta de resistência. Qual o seu balanço da gestão que terminou?

R: Assumimos em 2018 já em um momento bastante difícil da história do país. Quando a extrema-direita venceu as eleições, ficou evidente que se encerrava um ciclo político e abria-se um período de luta contra retrocessos. Avalio que as lutas de estudantes, professores, cientistas, da sociedade em geral, conseguiu barrar a imposição de uma série de pautas obscurantistas.

Talvez o maior exemplo tenha sido o tsunami nas ruas contra os cortes na educação e na ciência, mas também conseguimos derrotar a fusão entre Capes e CNPq, o fim do incentivo à política de cotas na pós-graduação, adiamos o Enem, conseguimos melhorar o orçamento da Educação em 2020, garantimos o pagamento das bolsas do CNPq e, principalmente, conseguimos tirar o país ministro da Educação da história. Por qualquer ângulo que se olhar, Bolsonaro tem nas pautas da educação e da ciência grandes obstáculos para impor seu projeto autoritário. Então, o balanço é de uma resistência ativa e vitoriosa.

P: E para o próximo período, quais as principais lutas?

R: A primeira questão continua sendo a luta em defesa da vida, porque a pandemia não acabou, estamos chegando em 140 mil mortos e sem controle da situação. Precisamos denunciar o governo genocida de Bolsonaro, porque a maioria dessas mortes poderia ter sido evitada se ele não fosse contra a ciência e aliado do vírus – por isso, dizemos que é genocida. E precisamos nos unir e lutar para salvar vidas.

A segunda e também imediata é reverter os novos cortes nos orçamentos da educação e da ciência. A proposta do governo na Lei Orçamentária Anual para 2021 é uma vergonha. Corta mais 1,8 bi da educação e joga o orçamento da ciência e tecnologia no pior patamar da história recente. A C&T pode entrar em colapso, não é exagero. Até o orçamento deficitário do CNPq é dependente da aprovação da regra de ouro, sem ela os recursos para bolsas de estudo só chegam até março. Então, lutar contra o desmonte é algo para já!

P: O Brasil vive crises múltiplas, sanitária, política e econômica. Em meio a essa situação trágica, a ciência passa por restrições orçamentárias que ameaçam desmontar o sistema nacional de C&T. Como você vê essa situação?

R: Voltamos mais de uma década atrás nos investimentos em ciência e tecnologia. Capes e CNPq passam por cortes de bolsas e até mesmo tentativas de desmonte, ameaças de fusão, uma situação difícil. Nós acreditamos que não há saída para a crise sem colocar a ciência e tecnologia no centro da reconstrução nacional. Em todos os países desenvolvidos e mesmo nos países em desenvolvimento, a pandemia fez os Estados nacionais investirem nesse setor estratégico. A corrida pela vacina, inclusive, se tornou uma disputa geopolítica entre as grandes nações.

A ANPG apresentou o Plano Emergencial Anísio Teixeira para a ciência e os pesquisadores com o intuito de fazer um chamado à sociedade e às instituições para a busca de alternativas. Em nossa concepção, não há caminho para a retomada do crescimento, para a reconstrução do país sem que coloque a valorização da ciência e da pesquisa no centro de um projeto nacional de desenvolvimento.

Para isso, precisamos ter prioridade e planejamento. Nosso plano fala em 150 mil bolsas para mestrado e doutorado, porque é preciso reverter a lógica de cortes contínuos e ainda garantir o prolongamento das atuais bolsas em virtude da pandemia. Propõe também o reajuste das bolsas, que estão congeladas desde 2013.

Falamos em 50 mil bolsas de pós-doutorado, porque o Brasil vive uma dramática fuga de cérebros, jovens qualificados que não têm perspectivas profissionais aqui. Em geral, muitos estudaram em universidades públicas e tiveram bolsas de estudos. Ou seja, o Brasil financia indiretamente o desenvolvimento dos outros. É uma economia burra. Precisamos manter e dar perspectivas para que façam ciência e gerem riqueza aqui.

Estamos numa época de mudanças de paradigmas. Revolução 4.0, nanotecnologia, inteligência artificial, internet das coisas, tecnologia 5G… Se o Brasil perder o passo nessa revolução produtiva, estará condenado ao subdesenvolvimento por décadas. Então, o Plano Emergencial Anísio Teixeira é pensando no Brasil que queremos e precisamos construir.

P: E como seria possível financiar esse plano num período de crise econômica e tantos cortes?

R: Aí é que está o problema: o Brasil deixou de pensar no amanhã para lamentar o hoje. Esse governo é raso, não tem proposta, vive “da mão pra boca”. Mas se não semear o futuro, não sairemos desse atoleiro. Em todos os países foram realizados esforços gigantescos para atravessar a pandemia e, dentro das estratégias de cada país, em geral houve incremento dos recursos para a ciência. Aqui no Brasil, não. Aqui, o orçamento de C&T vem caindo vertiginosamente desde 2014, de 8,7 bilhões vamos para 2,7 bi em 2021. Na Educação, o cenário é parecido. E tem a EC 95, que impede gastos sociais, mas deixa rolar solto os gastos para financiar a rolagem da dívida – é a fórmula para a destruição do país.

Na nossa proposta, os recursos do Fundo Social do pré-sal podem ser uma fonte importante de financiamento. O fim do contingenciamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico também, o que pode ser feito pautando e aprovando imediatamente o PLP 135/2020. A retirada dos recursos próprios das universidades do teto de gastos e a revogação da própria EC 95. Para tudo isso existem propostas em tramitação no Congresso Nacional.

P: O governo nomeou o terceiro colocado na lista tríplice na UFRGS. O que fazer diante dos ataques à autonomia universitária?

R: Isso é gravíssimo! É uma prática autoritária e abusiva a nomeação de interventores alinhados ideologicamente para gerir as universidades. Desde seu início, o governo Bolsonaro usa uma tática de perseguir e criminalizar a universidade pública. Na verdade, é o obscurantismo tentando se impor para controlar a produção de conhecimento, pois sabem que o ambiente de livre debate de ideias é terreno hostil para quem deseja o autoritarismo.

Em todos esses episódios de ameaça à democracia e ataque às instituições houve firme reação da sociedade, inclusive formando frentes amplas, que foram de movimentos sociais às lideranças de diversos partidos no Congresso. Nossa perspectiva é somar forças com entidades estudantis, acadêmicas, científicas, sindicais e com o mais amplo campo de representantes no parlamento para pressionar o Executivo contra esse ataque frontal à autonomia universitária, que é uma disposição constitucional.

P: Apesar da intensidade dos debates e da pluralidade de ideias presentes na pós-graduação, o Congresso te reelegeu presidenta em chapa única. A que você atribui esse acontecimento?

R: A pandemia adiou o 27º Congresso da ANPG, que era para ter acontecido no meio do ano e de maneira presencial. Realizar um evento desse porte virtual exigiu muita maturidade de todos os envolvidos. Mas a principal questão é a construção unitária da gestão e o foco em unir esforços contra o inimigo comum, que é o governo de extrema-direita.

Divididos, estaríamos mais fragilizados para enfrentar essa tentativa de desconstrução do Brasil, de dividir nosso povo, de desmontar o conhecimento construído por gerações e gerações. Unidos conseguiremos dar um basta no obscurantismo e descortinar dias melhores para o nosso povo.

PERFIL

Flávia Calé, reeleita presidenta da ANPG é mestranda em História Econômica na USP, além de membro do Conselho Superior da Capes. Foi diretora da União Nacional dos Estudantes e da União Estadual dos Estudantes do Rio de Janeiro. É mãe da Aurora, neném de 1 ano e quatro meses.