Associação de Pós-Graduandos da Universidade de São Paulo
Campus São Carlos
São Carlos, 06 de agosto de 2020
A APG realizou, no dia 03 de agosto, uma reunião denominada “Fórum de RDs”, na qual participaram representantes discentes de todos os institutos do campus São Carlos bem como de instâncias superiores. A partir desta, foi deliberado o envio da presente manifestação acerca da flexibilização da pesquisa e de atividades presenciais.
A situação do Brasil no contexto da COVID-19 está em destaque no mundo todo, infelizmente de forma negativa. No momento, diversos países impõem restrições à entrada de brasileiros, órgãos de imprensa internacionais noticiam o caos constante no qual vivemos e diversas outras humilhações ocorrem ao nosso país, que possui infraestrutura de saúde considerável para o enfrentamento de crises como a atual, mas que não tem conseguido transformar essa potencialidade em realidade junto à população.
Observamos sucessivos picos no número de mortos no Brasil e, apesar disso, para surpresa ainda maior da comunidade global, em vez da manutenção ou endurecimento de medidas restritivas de isolamento social, são orientadas e aplicadas determinações de flexibilização da quarentena sem critérios objetivos que as guiem. É o caso, por exemplo, do retorno às aulas da rede pública no Estado de São Paulo, proposta para o começo de setembro.
Na Universidade de São Paulo a situação é melhor, já que as aulas presenciais não devem retornar até 2021, o que garante certo nível de segurança sanitária e o direito ao isolamento a boa parte da comunidade acadêmica. Recentemente, entretanto, foi anunciada a flexibilização das normas restritivas com o retorno das atividades de pesquisa presencial. Dada a importância do assunto e acreditando na necessidade e possibilidade do diálogo e de deliberações construídas coletivamente, redigimos o presente documento enquanto representantes da categoria dos pós-graduandos com a intenção de participarmos dos processos decisórios da Universidade referentes ao tema.
Entendemos que a pesquisa na USP nunca parou. Conforme o mote “a USP não vai parar”, aulas, trabalhos, reuniões, defesas e outras tarefas foram realizadas de forma remota neste período. Com relação à autorização de pesquisas e atividades presenciais no Campus da USP São Carlos, um comunicado feito pelo Presidente do Conselho Gestor e Prefeito do Campus da USP São Carlos, no último dia 31 de julho, deixa claro que “há equipes multidisciplinares de pesquisadores que estão autorizadas pela Universidade de São Paulo a desenvolver as atividades de pesquisa relacionadas ao desenvolvimento de medicamentos e terapias visando ao combate à COVID-19”. No mesmo comunicado, faz-se menção sobre a liberação da entrada de pesquisadores na temática de COVID-19 no Campus 2, assim como de servidores ligados a áreas essenciais. Tais medidas se fazem razoáveis neste período em que a importância da ciência pública e de qualidade se evidenciam no dia-a-dia da população.
O que de fato nos preocupa é o Documento nº 2 do Plano de readequação para o ano acadêmico 2020 (PRAA-2020), divulgado em 03/07/2020 pelo Grupo de Trabalho (GT) da USP dedicado ao tema e reivindicado pela Diretoria da EESC no Ofício 022 20, de 15 de julho. No corpo do texto é possível observar um planejamento dedicado à volta das atividades de pesquisa a partir da segunda metade do mês de agosto. Para tal, são fixadas normas de segurança sanitária aos laboratórios de pesquisa, bem como ações no plano administrativo para garantir a distribuição de EPIs e viabilizar a limpeza dos ambientes.
Devido ao atual estágio da pandemia, que não demonstra nenhum sinal de declínio ou controle, enquanto representantes da categoria de pós-graduandos, nós pontuamos questões gerais e particulares a serem definidas antes de qualquer retorno. Acreditamos que uma eventual flexibilização por parte da Universidade, sem levar em consideração os pontos aqui colocados, poderá gerar pressão nos pós-graduandos, além do aumento da possibilidade de contágios desnecessários e suas consequências. Para justificar tal posicionamento e ensejar o debate de forma propositiva, apresentamos o que segue:
⦁ A questão do “bom senso”: Sabemos que existe uma disputa de narrativa em relação à pandemia, com a existência de grupos que minimizam e até ridicularizam a gravidade da situação. A comunidade acadêmica não foge a esta regra, de modo que infelizmente não se pode considerar o senso de responsabilidade coletiva como um valor universalmente difundido ou objetivamente determinado entre seus membros. Este ponto é de grande relevância no caso da pós-graduação, uma vez que existe uma forte hierarquia e dependência na relação orientador-orientando. Dito isso, reivindicamos o caráter facultativo da presença nos laboratórios de pesquisa a todos e todas pós-graduandos, de forma institucionalizada e reconhecida pelos órgãos superiores da Universidade, para mitigar possíveis atos de assédio. Solicitamos também um melhor detalhamento sobre os mecanismos de ação da Universidade frente ao descumprimento das regras de responsabilidade sanitária por parte dos presentes nos laboratórios, em especial professores, orientadores e técnicos. Quem poderá fazer denúncias? Junto a qual órgão da Universidade? Como será garantida a não-retaliação do(a) denunciante?
⦁ Fiscalização e higiene: Só haverá segurança sanitária em espaços confinados e com tantas pessoas como os laboratórios da USP São Carlos se todos os frequentadores desses ambientes seguirem estritamente as regras de distanciamento e convívio social, bem como a utilização dos equipamentos de proteção e hábitos de higiene incrementados. Como a USP garantirá a fiscalização e o acompanhamento das condições às quais os pesquisadores, técnicos, professores e funcionários terceirizados estarão expostos? Haverá segurança institucional para a denúncia de pessoas que não agirem em conformidade com a segurança sanitária? Haverá pessoal suficiente para assegurar a limpeza constante dos ambientes? Já existe legislação interna prevista para lidar com os conflitos e acusações que eventualmente surgirem em relação às regras sanitárias?
⦁ EPIs e EPCs: Medidas de segurança extraordinárias exigem gastos extraordinários. Na pós-graduação, em alguns casos os pesquisadores nem mesmo são pagos, e quando são, recebem bolsas defasadas e sem reajustes há anos. Tudo isso, se somado a diversos gastos necessários com EPIs e produtos específicos, significará certamente prejuízos importantes nos orçamentos já debilitados dos pós-graduandos. A USP arcará com os custos e fornecerá EPIs e EPCs? Com que regularidade? Como será feita essa distribuição?
⦁ Transporte e alimentação: Principalmente nos casos do Campus 2 e do CRHEA, existe a necessidade de transporte e de alimentação, sendo de primeira importância para a flexibilização a consideração desses aspectos. Quais medidas serão aplicadas em relação aos transportes, de modo a assegurar o acesso dos pós-graduandos ao Campus e sua segurança sanitária no caminho? Controle de lotação e consequente aumento do número de viagens? E, em relação a alimentação, serão fornecidas marmitas? Onde os pós-graduandos comerão? Como será a segurança dos funcionários do transporte e do restaurante?
⦁ Saúde e responsabilidade: A COVID-19 se espalha a uma taxa mais intensa do que a gripe comum e há vários mecanismos de transmissão. Mesmo com as regras sanitárias sendo cumpridas, é possível que pessoas da comunidade acadêmica venham a se contaminar durante as atividades de pesquisa. Sendo os pós-graduandos ligados diretamente à Universidade, é de fundamental importância que a USP se responsabilize por eventuais infecções. Quais responsabilidades a USP assumirá em casos de infecção? Qual será o apoio e assistência prestados à(s) pessoa(s) infectadas e ao seu entorno?
⦁ Prazos dos pós-graduandos: A pandemia da COVID-19 ataca mais um flanco da população: a saúde mental. Lidar com o isolamento social sem perspectivas de término, o trabalho remoto, o medo e ansiedade que a possibilidade de se infectar causam e, por vezes, com as dores de adoecer ou ver um ente querido adoecer à distância, torna impossível imaginar que o rendimento dos pesquisadores permaneça o mesmo. A Universidade deve respeitar essas importantes limitações impostas pela conjuntura e, assim, valorizar os pesquisadores que nela atuam. Dessa forma, pleiteamos a extensão dos diversos prazos que os pós-graduandos devem cumprir por quanto tempo durar a pandemia, irrestritamente e sem exceções. Ao mesmo tempo, requeremos a continuidade das bolsas de pesquisa aos alunos que recebem recursos diretos da USP neste período, bem como manifestações organizadas da Universidade junto às agências de fomento para a igual extensão dos subsídios a elas ligados.
⦁ Funcionários terceirizados: Sabemos que mesmo sem a pandemia os funcionários terceirizados possuem regimes de trabalho desgastantes, são mal remunerados e desfrutam de poucos direitos trabalhistas. Com as demissões recentes, o retorno das atividades de pesquisa significa uma intensificação na demanda dos serviços prestados por terceirizados com menos pessoas para executar esses trabalhos, agravando a já complicada situação da categoria, ainda mais considerando o perigo sanitário ao qual estariam expostos. Em caso de infecção de funcionário(s), qual seria a postura da USP e da empresa terceirizada? Há um seguro-saúde previsto para tais ocorrências? A Universidade poderia garantir a impossibilidade de demissão desse(s) funcionário(s)?
Repudiamos também qualquer documento responsabilizando o próprio pós-graduando caso este venha a adoecer. Exemplo claro disso é o Comunicado da Diretoria da EESC, enviado em 5 de agosto à comunidade acadêmica e acompanhado de um Termo de Ciência e Responsabilidade que, na prática, abre brechas claras para a exigência da presença dos pós-graduandos nos laboratórios enquanto exime a Universidade da responsabilidade sobre as consequências do trabalho presencial. Como exposto anteriormente, essa grave pressão não corresponde ao significado real da Universidade ou ao seu papel para nossa comunidade, e demonstra evidente desrespeito para com os pesquisadores, parte vital da força de trabalho da USP. De fato, nesse momento de crise é preciso defender a continuidade da pesquisa científica, mas não podemos colocar nenhuma vida em risco para fazê-lo.
Por fim, reiteramos nosso posicionamento ressaltando a viabilidade da flexibilização da pesquisa e de atividades presenciais somente mediante a contemplação dos questionamentos propostos. Compreendemos que a Universidade precisa apresentar um plano robusto para uma possível flexibilização, principalmente até a distribuição de uma vacina acessível a todos e todas. Reforçamos, assim, a união das categorias e o debate constante como ferramentas para a definição e a criação das condições necessárias para o retorno das atividades presenciais, de maneira sustentável e sem oferecer riscos aos pós-graduandos e outros atores de nossa valorosa comunidade.
Agradecendo a atenção e apelando ao cuidado à vida, assinam este documento:
Associação dos Pós-graduandos da USP São Carlos
Representantes discentes da USP São Carlos