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Análise de cartas trocadas entre Oswaldo Cruz e outros médicos renomados no início do século 20 revela incertezas sobre a segurança e a eficácia dos soros e vacinas usados no Brasil, apesar do discurso público de total confiança nesses produtos.
Por Thaís Fernandes
Análise de cartas trocadas entre Oswaldo Cruz e outros médicos renomados no início do século 20 revela incertezas sobre a segurança e a eficácia dos soros e vacinas usados no Brasil, apesar do discurso público de total confiança nesses produtos.
Embora o conhecimento científico muitas vezes se apresente de forma inquestionável, seu processo de construção e consolidação é marcado por divergências. No início do século 20, por exemplo, cientistas liderados pelo médico e sanitarista Oswaldo Cruz esforçavam-se para atestar publicamente a segurança e a eficácia dos soros e vacinas usados no Brasil. Mas a análise da correspondência desses pesquisadores revela um cenário de incertezas em relação a esses produtos.
A controvérsia presente no processo de desenvolvimento e produção de soros e vacinas brasileiros nesse período foi analisada pelo sociólogo Jorge Carreta, pesquisador do Instituto Federal de São Paulo, em artigo da revista História, Ciências, Saúde: Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Para isso, ele examinou cartas trocadas entre Oswaldo Cruz, seus colaboradores Vital Brazil, Chapot Prévost e Francisco Fajardo e outro renomado médico da época, Miguel Pereira.
As cartas tratavam do uso do soro antipestoso, que estava sendo produzido por Cruz no recém-criado Instituto Soroterápico Federal (que posteriormente deu origem à Fiocruz) para combater e prevenir a peste bubônica. Naquele período, a doença havia se tornado um problema de saúde pública no Brasil e o soro estava começando a ser testado em pessoas doentes e naquelas que tinham algum risco de contrair a doença.
A correspondência analisada mostra que, a despeito da confiança mostrada publicamente por Oswaldo Cruz e seus colaboradores em relação ao uso do soro, vários fracassos ocorreram durante seu processo de produção. “Não havia toda a certeza que eles tentavam transmitir ao público”, afirma Carreta.
O pesquisador conta que Cruz e seus colegas faziam experiências individualmente e depois trocavam os resultados por carta, onde relatavam as reações aos diferentes tipos de soro. “O conteúdo das cartas mostra a incerteza em relação à eficácia e à segurança do soro”, resume. Os principais problemas estavam associados à definição da dosagem correta, aos efeitos colaterais e ao processo de fabricação.
Em uma das cartas, por exemplo, Chapot Prévost relata a Francisco Fajardo o resultado de testes do soro antipestoso com 56 adultos e sete crianças. Ele conclui: “Em suma, de todas as pessoas por mim inoculadas não houve uma só que não apresentasse algum problema podendo ser atribuído ao trabalho de imunização.”
Desconfiança geral
Mesmo não tendo conhecimento desses resultados, a população temia os possíveis perigos dos soros e vacinas para a saúde e mostrava grande resistência em relação a seu uso. Um marco dessa oposição popular foi o episódio da Revolta da Vacina, em 1904, quando as pessoas se rebelaram contra a campanha de vacinação obrigatória, instituída pelo governo federal para combater a varíola.
A oposição popular à vacinação obrigatória reivindicada por Oswaldo Cruz culminou com a chamada Revolta da Vacina, em 1904. Cartuns publicados na época (como o acima) retratam o clima de guerra do momento. (imagem: Arquivo/ Fiocruz) |
Essa incerteza não se restringia à população. Até na comunidade médica não havia consenso em relação aos efeitos da administração de soros e vacinas. Muitos médicos colocavam em xeque a própria bacteriologia, em que se baseava o combate às epidemias e cujos métodos eles não consideravam científicos. Em carta a Oswaldo Cruz, por exemplo, o médico Miguel Pereira manifestou suas dúvidas sobre o soro antipestoso – chegando inclusive a mencionar falecimentos em decorrência da imunização – e declarou-se inimigo de seu uso.
A desconfiança em relação ao soro antipestoso aumentou em 1906, quando um dos colaboradores de Cruz, Francisco Fajardo, morreu horas depois de ter injetado em si mesmo o soro produzido pelo Instituto Soroterápico. Embora as opiniões médicas sobre a causa de sua morte fossem contraditórias, a maior suspeita recaía sobre o soro. Mas Cruz continuava enfático ao defender a segurança do uso do produto.
Carreta explica que a adoção do discurso de infalibilidade dos soros e vacinas por Cruz estava relacionada à defesa do projeto do Instituto Soroterápico e de seus planos para a saúde pública brasileira. Além disso, o sanitarista acreditava em sua própria ciência. “Para ele, os acidentes decorrentes da aplicação do soro eram pouco importantes se comparados à quantidade de vidas que seriam salvas”, diz.
O pesquisador ressalta que a atuação de Oswaldo Cruz e seus colegas foi muito importante para consolidar a crença dos médicos e do público nos soros e vacinas. “Apesar de turbulento e controverso, esse trabalho foi fundamental para estabelecer a confiança nos produtos da bacteriologia e o sucesso atual das campanhas de vacinação no Brasil”, avalia.