Por Alberto Consolaro
Muitas descobertas são atribuídas ao “acaso” ou “acidente”, mas a maioria é resultante da serendipidade. Quando um fenômeno, evento e observação são detectados por mentes preparadas e adequadamente interpretados, isso pode gerar descobertas, inventos e teorias para que nos adequemos cada vez mais ao mundo. Quantas maçãs e outros frutos não caíram sobre a cabeça de outros antes de Newton formular a teoria da gravidade! Mas sua mente preparada permitiu uma interpretação adequada do evento e a transformação em conhecimento. Isso se chama “serendipidade”. Pasteur afirmava: “No campo da observação, o acaso favorece apenas a mente preparada”.
Em civilizações antigas, pães embolorados eram utilizados com sucesso no tratamento de feridas irreparáveis. Mas eram os antibióticos produzidos pelos fungos que destruíam as bactérias contaminantes e davam lugar ao reparo aparentemente impossível. Em 1928, o escocês Alexander Fleming, ao retornar ao seu laboratório, no Hospital St. Mary, em Londres, após alguns dias ausente, observou o crescimento de um fungo em uma de suas culturas de estafilococos, “estragando-as”. Percebeu que ao redor das áreas com fungo não havia bactérias e sua mente preparada logo captou que o fungo produzia uma substância inibidora do crescimento bacteriano.
Seus estudos posteriores revelaram a substância bactericida denominada penicilina, pois o fungo produtor era o Penicillium notatum. Uma descoberta que mudou a humanidade, mas com certeza outras culturas bacterianas já haviam sido contaminadas por esse fungo, e muitas outras pessoas que viram o mesmo fenômeno não estavam preparadas para interpretá-lo. Esse “acaso” ou “acidente” detectado por uma mente preparada representa a serendipidade.
A serendipidade parece ser a faísca para o conhecimento e o raciocínio iluminarem um acaso. Encontrar algo que se procura pode ser o resultado de criatividade e persistência, mas encontrar algo que não se procura e estar apto a interpretá-lo como importante é serendipidade. Parafraseando Pasteur, o físico Joseph Henry afirmou: “As sementes das grandes descobertas estão constantemente flutuando em torno de nós, mas elas só criam raízes nas mentes bem preparadas para recebê-las”. A ciência progrediu muito graças à serendipidade.
O conceito da serendipidade pode ser aplicado inclusive nos relacionamentos humanos. O filme Serendipity relata o encontro de dois personagens por “acaso”. Quantas vezes, ao procurar uma palavra no dicionário, encontramos por “acaso” outra de nosso interesse. Quantos livros e filmes não encontramos por “acaso”? A partir dos acessos que você tem a sites e dos seus e-mails, os provedores colocam em sua tela apenas os produtos que o interessam, em ofertas quase individualizadas: é uma serendipidade calculada, e você acha que foi coincidência.
Dois exemplos fantásticos de serendipidade. Horace Wells, um cirurgião-dentista, foi assistir a uma demonstração de inalação de gás óxido nitroso como divertimento e se tornou o pai da anestesia. Branemark estudava microcirculação em tíbias de coelho com câmeras revestidas de titânio e viu que o osso aderia nelas: criou os implantes dentários osseointegráveis, que mudaram totalmente a odontologia.
Existe uma longa lista de descobertas e inovações por serendipidade: big-bang, bioeletricidade, borracha vulcanizada, dinamite, índigo, fotografia, insulina, iodo, náilon, polietileno, oxigênio, raios-x, sucrilhos, teflon, velcro etc.
Um professor universitário gasta parte significativa do seu tempo dedicado à burocracia, administração e política institucional, preenchimento de relatórios, levantamento de custos e gerenciamento de projetos. A outra parte do tempo fica com aulas, cursos e avaliações. É muito pequena a parte que se dedica ao laboratório e muito menos às reflexões e desdobramentos de resultados.
Além do tempo mínimo para refletir e criar, o professor está no meio de uma avalanche de informações, impossível de ser aproveitada pela quantidade e variedade. Temos que selecionar o que e quando ler. O pior: falta tempo para a ocorrência da serendipidade, criatividade e inovação que se cobra.
A mente preparada daria lugar à serendipidade, mas depende do pensar, refletir, interpretar e desdobrar resultados, inclusive com extrapolações para o lado pessoal, emocional, criativo e artístico da vida. Muitos acreditam que a “sorte” favorece alguns, que o destino facilita a vida de outros colocando os “acasos” em suas descobertas. Na verdade, a “sorte” e o “acaso” ocorrem na vida de todos, mas são poucos os que os detectam e aproveitam, pois as mentes destes estão preparadas para interpretar e desdobrar atitudes, processos e inventos para a vida. A serendipidade na evolução da ciência e da humanidade tem se mostrado essencial.
Nós criamos tempo e preparamos a mente para a serendipidade? A qualidade do tempo que passamos ligados à universidade influencia fortemente na produtividade de elevado desempenho. Paremos para pensar: por que não somos tão citados, por que não temos Nobel e por que nos cobram inovações? Me poupem: não é pelo inglês! Reflitamos.
Alberto Consolaro é professor da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP, jornalista e autor do livro O “ser” professor – A arte de ensinar e aprender.
Originalmente publicado em Jornal da USP
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