Por Gabriel Nascimento*
Há alguns anos assistimos à professora Suzana Herculano lançar a proposta de profissionalização da carreira do cientista no Brasil, buscando afeiçoar nosso sistema nacional de produção científica a diversos outros no mundo. Na ocasião, a Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG) se manifestou contra a proposta pelo conjunto de equívocos que eram imanentes do projeto.
Em primeiro lugar, um dos motivos é a noção que se tem da pesquisa científica. Até o mundo mineral compreende que a pesquisa brasileira precisa passar por transformações necessárias para alcançar popularização e qualidade, sem as dicotomias fundacionais entre a expansão da oferta e a manutenção do desenvolvimento científico. No entanto, a proposta colocada pela professora objetivava a profissionalização da carreira do cientista através de sua implementação no mercado, retirando da universidade o seu potencial de oferta de atividades de pesquisa e, como consequência, pós-graduação. Desse modo, é preciso esclarecer que a ANPG se posiciona sempre por parcerias público-privadas, desde que o interesse público prevaleça. Tirar a pós-graduação da estrutura das universidades públicas e colocá-la no vínculo dos laboratórios privados, como quis a professora, é esquecer o interesse público, creditando a uma falsa meritocracia, sempre governada no Brasil desde os quinhentos pela lógica do jeitinho e do favor, a formação e provimento de cientistas e pesquisadores no Brasil. Regulamentar a carreira do cientista é preciso. Colocar interesses privados como centrais não.
Porém, é entendimento nosso hoje de que não se pode chegar à regulamentação da carreira do cientista, buscando sua profissionalização, sem passarmos pelos Pós-graduandos. Os cientistas em formação são aqueles que, invisibilizados por sua própria ambivalência entre o trabalhador e o estudante, precisam reivindicar sua identidade. Foi nessa direção que a última edição do Conselho de Associações de Pós, fórum da ANPG, realizado em Ouro Preto no ano passado, aprovou o documento de direitos e deveres dos pós-graduandos.
Esse documento pioneiro pauta a identidade do aluno de pós-graduação como cientista em formação, materializado entre o estudante e o trabalhador, como aquele que necessita de direitos enquanto classe trabalhadora e categoria estudantil. Essa concepção avançada tanto compreende o Brasil historicamente, por não colocar nossos interesses no limiar de imitações colonialistas do universo eurocêntrico, como é o caso das propostas que imitam qualquer modelo universitário dos países mais desenvolvidos no sistema capitalista como se isso fosse dar certo aqui. Trata-se mais uma vez da égide do discurso vira-lata de que a colônia precisa virar metrópole para se desenvolver. Não é verdade. Num país como o nosso em que as universidades fundadas foram as últimas do continente, e que a realidade do estudante sempre foi atrelada à do trabalhador, entender a pós-graduação como sacerdócio de alguns, concebida dentro do âmbito dos interesses privados, é descentralizar o interesse público em nome de um suposto desenvolvimento científico que, sem entendermos a realidade da demanda por pós-graduação no Brasil, estamos fadados a não ter. Mesmo sem dados oficiais do Geocapes (Censo da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior- Capes, autarquia do Ministério da Educação que regula as atividades de pesquisa no Brasil) sobre a pós-graduação lato sensu, estimamos que a ampla maioria dos estudantes de cursos de especialização, residência e aperfeiçoamento seja formada de trabalhadores. O mesmo se dá, segundo os dados oficiais do GEOCAPES, com a pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) em que temos uma grande parte formada por trabalhadores. Esses trabalhadores são aqueles que, muitas vezes se distanciam se sua vida laboral para se dedicar à pesquisa, sem ter direitos trabalhistas (previdência, décimo terceiro, férias, seguro saúde etc.) e assistência estudantil (restaurantes universitários, moradias estudantis, auxílios etc.) garantidos por legislação específica.
É a partir da figura do pós-graduando que precisamos pensar a profissionalização do cientista, com carreira própria. Primeiro porque não podemos refletir uma categoria profissional sem pensarmos sua formação acadêmica, social e política. Em segundo lugar, não há formação sem direitos e deveres. Como a maioria dos produtos acadêmicos no Brasil é gerada pelos Pós-graduandos, cientistas em formação, é preciso pensar o papel do cientista a partir de sua formação e das estruturas que lhe são cedidas para a pesquisa. Regulamentar a carreira do cientista, subordinando-o a laboratórios privados, muitas vezes governados pela lógica do mercado financeiro e alicerçados pela política neoliberal de encolhimento do espaço público, não garante mais desenvolvimento científico identificado com melhorias efetivas para nossa sociedade. A subordinação da pesquisa ao espaço privado pode fazer prevalecer a política do favor, do jeitinho e do patrimonialismo, sempre constantes em nossa história e alçados com mais força fora do alcance do Estado.
Por isso, mais uma vez a Associação Nacional de Pós-graduandos, como entidade representativa dos pós-graduandos brasileiros, e como uma das únicas entidades de pós-graduandos na América Latina e no mundo, tem posicionamento acertado, condizente com uma profissionalização humanizada e cidadã da carreira dos cientistas. Sem formar cientistas de qualidade, com garantia de direitos e deveres, dentre os quais direitos trabalhistas e assistência estudantil, não poderemos afirmar o espaço profissional na pesquisa brasileira e no terreno das políticas de trabalho e emprego. Em outras palavras, o desenvolvimento científico não virá sem as relações consequentes com a figura e caracterização dos pós-graduandos.
*Gabriel Nascimento é mestrando em Linguística Aplicada pela UnB, presidente da Associação de Pós-graduandos Ieda Delgado da UnB, vice-presidente regional da Associação Nacional de Pós-graduandos.