Por Gabriel Nascimento*
É meia-noite e estou voltando da festa. O carro da polícia reduz a velocidade para me identificar. Mas sou um disfarce e a polícia vai embora. Roupa nem tão simples nem chamando muita atenção. São apenas marcas das lojas de departamento. Nem as marcas que levam pujança às compras da periferia, nem os artigos de grife. O que visto é o capital simbólico da classe média. O que visto é um disfarce.
É assim que nós negros somos tratados institucionalmente no Brasil. Ou nos enquadramos em disfarces socialmente funcionais, ou somos identificados pelo Estado como “alienígenas”. Ser negro no Brasil é correr riscos. Risco de ser parado pela polícia e talvez nunca mais voltar pra casa e risco de ser confundido pelo outro negro como aquele que lhe quer subtrair o ponto de droga ou boca de fumo. É sempre uma encruzilhada perigosa.
O negro veste a roupa e o capital de classe média, mesmo sem ser de classe média, e atravessa as ruas. Às vezes o disfarce funciona. Às vezes não. É o caso de Mírian França de Melo. Estudante de doutorado pela UFRJ, este podia lhe render um bom disfarce. Não foi o caso. Acusada de matar a turista italiana Gaia Molinari, a doutoranda negra foi presa mesmo após as vinte e quatro horas do flagrante e nem pôde se comunicar com a própria mãe. Às vezes o disfarce não funciona porque o racismo institucional funciona muito mais.
O negro se vê em encruzilhadas. Pode resistir usando roupas da periferia, de onde vem, e ser parado e assassinado pelo Estado e pelo mercado das drogas ilegais. Ou pode se disfarçar. Fazer uma faculdade, um mestrado e um doutorado. Usar roupas parecidas com as da classe média tradicional, aquela que a TV apresenta. Isso não significa que o disfarce funciona em todas as horas.
O caso de Mírian, a doutoranda negra que foi presa e mantida encarcerada, mesmo sob evidências que apontavam para outrem como assassinos da italiana, está no contexto do número de mortes da juventude negra no Brasil. Dos alarmantes mais de 30 mil homicídios anuais acometidos aos jovens, 77% dos assassinados são negros. Sem disfarce e com uma violência digna de uma sociedade autoritária e neurótica, que não conseguiu resolver sua dívida histórica com as minorias, o Brasil está na lista da Anistia Internacional. Em nosso país está em andamento um genocídio da juventude negra, este disfarçado para não negligenciar nosso eterno mito da democracia racial.
Em nosso disfarce precisa estar presente mais do que o disfarce do negro que habita o espaço urbano, de prestígio das classes médias. Em nosso disfarce precisa estar o constante contradiscurso em uma sociedade que trata o diferente como o “outro” a ser eliminado. Em nossas práticas, em detrimento da contingência do disfarce funcionar ou não, o ato rebelde de negar a importância essencial do disfarce. Se o disfarce é bom para a sobrevivência, não o é para transformar aqueles que jamais poderão se disfarçar. Não é e nunca será, enquanto vivermos numa sociedade cheia de contradições e assimetrias sociais, uma questão simples de meritocracia. Estamos muito distantes de um mundo de justiça social, mas, com toda a certeza, não é se convencendo de nosso disfarce habitual que vamos alcançá-lo.
*Gabriel Nascimento é presidente da Associação de Pós-graduandos da UnB, vice-presidente Centro-Oeste da Associação Nacional de Pós-graduandos, mestrando em Linguística Aplicada pela Universidade de Brasília.
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