Acontece muito, o tempo todo e por isso mesmo todo mundo acha normal. Pelos regimentos de seleção da grande maioria dos programas de mestrado, a candidata deve apresentar, além da comprovação de ter terminado a graduação, uma prova de que tem conhecimentos básicos sobre a área pretendida e um projeto de pesquisa. Os conhecimentos específicos, se não foram aprendidos durante a graduação, podem ser adquiridos, com algum esforço, antes da prova, afinal a Universidade serve mesmo para ajudar a levar as estudantes ao conhecimento.
Já o projeto, em geral a candidata demanda que alguém mais experimentada a ajude a fazer. A começar pelo formato do texto e da própria elaboração de um pensamento autônomo, voltado para a pesquisa. As IES não fomentam nem universalizam o caminho das pedras para a iniciação científica, nem ao menos ofertando disciplinas de formação (para técnicas básicas, como fazer um projeto de pesquisa, escrever um artigo científico, etc.). Paira no ar uma ideia comum sobre quem faz iniciação científica, que acompanha uma professora no laboratório ou participa de eventos científicos com frequência,é uma escolhida, uma privilegiada,inteligente acima da média. Na verdade, essa pessoa só dedicou tempo para uma atividade que qualquer pessoa comprometida tem todas as condições de exercer. As estudantes que passam pela graduação com grande dificuldade (porque as condições de permanência são incipientes), tendo que trabalhar e correndo para não perder as aulas – às vezes com bastante sono nelas – sabem que essa vivência acadêmica não está disponível para todo mundo. É notável que a vivência na universidade não seja a mesma para todos, e isso é até saudável, principalmente do ponto de vista das infinitas e imprescindíveis funções da Universidade na sociedade.
Entretanto, fere esse mesmo caráter “universal” distinguir as oportunidades (que não são regimentais, mas estruturais) pelas condições prévias e não pelos potenciais. A experiência coma extensão, por exemplo, nunca serve como critério no ingresso na pós-graduação stricto sensu. O que diremos de experiências profissionais? A pós-graduação acaba reforçando uma prática de aceitar pessoas que não precisam trabalhar, pois não diversifica seus mecanismos de seleção e não oportuniza estudantes das mais variadas origens e vivências. Permanecer com esses paradigmas vai na contramão de uma universidade cada vez mais com perfil diversificado e não apenas de uma cor, uma origem social, um ponto de vista. Ao terminar a graduação, com certeza uma grande vitória para qualquer pessoa, quem gostaria de continuar a estudar, pesquisar, se aprofundar em alguma área que tenha gostado mais na faculdade, não sabe nem por onde começar. Em geral, procuram professoras para ajudar nesse processo de transição, mas na maioria das vezes elas já tem muitas orientandas, estão ocupadas, não podem, você não tem nada concreto, você trabalha ainda por cima? As orientandas em geral são as mesmas desde a graduação, pois, segundo pesquisa feita ano passado na UFRJ pela professora Debora Foghel, então pró-reitora de pós-graduação, a maioria das mestrandas fizeram a tal da iniciação científica. Arrisco dizer que a maioria que faz, ou consegue fazer, pesquisa ou extensão durante a graduação seja de estudantes mais favorecidas economicamente pelas famílias ou aquelas que acessam as políticas de assistência estudantil.
Então, mais uma vez, a questão econômica influencia decisivamente, mas também as políticas públicas. Com o diploma na mão, a recém-formada trabalhadora não tem nenhum incentivo a continuar a estudar, a querer ser pesquisadora. Como engenheira, médica, advogada, professora, ou qualquer outra profissão, a remuneração será maior que uma bolsa de mestrado, considerando que grande parte dos programas proíbem a bolsa em acúmulo com vínculo empregatício. Mesmo assim há quem considere a bolsa “um incentivo” para a pós-graduanda, quando na verdade significa sustento para quem não é amparada por fontes de renda externas. Aparece o velho mito da meritocracia, da vocação, da determinação, da abdicação. Dizem “Poderiam resolver ter um estilo de vida mais modesto, morando na universidade, comendo na universidade e usando todos os serviços básicos dos campi para se dedicar à sua pesquisa”, mas simplesmente essas condições não existem na maioria das universidades e centros de pesquisa no Brasil. A maioria das pós-graduandas não tem bolsa e só podem pagar a previdência de forma autônoma, não tem férias, 13º – mesmo que várias rotinas de pesquisa tenham caráter laboral. Muitas vezes, o exercício da pós-graduação é um trabalho sem regulamentação, pois as cargas horárias, rotinas e atividades ficam a cargo das decisões, em última instância, da orientadora (que não te obrigação de mostrar critérios objetivos). Como escolher fazer pós-graduação? Muitas acreditam no modelo The big bang theory, que os laboratórios são privatizados e tudo funciona com direitos trabalhistas (muitas propõem a CLT para a pós-graduação). Entretanto, há vários modelos de pós-graduação no mundo que funcionam e desenvolvem tecnologia de ponta, inclusive privados, que as empresas entram pesado com investimentos. Onde estão esses investimentos da iniciativa privada em ciência e tecnologia no Brasil? Pelo jeito, o Brasil depende muito da Petrobras. Além disso, se as empresas investem não é por outro motivo que não seja o lucro, portanto as pesquisas devem servir a esses interesses. Não é fácil fazer pós-graduação no Brasil, mas é muito melhor aqui do que em muitos lugares do mundo. Na universidade pública brasileira temos um ambiente de base social sólida, que nos dá potencial para desenvolver tecnologia e inovação para o bem público, para a melhoria da condição de vida das pessoas.
Quase a totalidade das pesquisas feitas no Brasil estão nas universidades, o espaço onde a sociedade se pensa e propõem soluções coletivas. As potencialidades brasileiras, incluindo esse caráter, são enormes, mas os desafios maiores ainda. A pós-graduação se expandiu exponencialmente nos últimos anos, mas não pode continuar sendo vista como um privilégio, naturalizando um caráter elitista na academia. Adequar a situação das pós-graduandas é investir de maneira significativa na ciência do Brasil e também para o mundo, pois a ciência não deveria ter fronteiras.
OBS: Escrevo no feminino para lembrar que a maior parte das pós-graduandas são mulheres. E ainda não há licença maternidade garantida em lei.
*Gabrielle Paulanti é secretária-geral da ANPG
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