Por Tamara Naiz da Silva*
Excelentíssimos senhores e senhoras parlamentares e sociedade,
A Associação Nacional de Pós-graduandos, assim como diversas entidades e movimentos educacionais, defende desde a sua constituição, em 1986, uma educação pública, gratuita e de qualidade, assim como uma universidade socialmente referenciada. Portanto, diante da proposição de quebra do princípio da gratuidade em instituições públicas, manifestou seu posicionamento contrário à aprovação, em primeiro turno, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 395/2014, feita pela Câmara federal no dia 21 de outubro. A seguir elenco alguns argumentos que nos colocam contrários à aprovação desta matéria.
1) A PEC, de autoria do Dep. Federal Alex Canziani (PTB-PR) e relatoria do Dep. Federal Cleber Verde (PRB-MA) altera a redação do inciso IV do artigo 206 da Constituição Federal, que garante “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”. A proposta de alteração constitucional pretende garantir a “gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais, salvo, na educação superior, para os cursos de extensão, de pós-graduação lato sensu e de mestrado profissional, exceções para as quais se faculta sua oferta não gratuita, respeitada a autonomia universitária”. De modo que as universidades públicas poderão cobrar taxas e mensalidades de cursos de extensão, pós-graduação lato sensu e mestrados profissionais (stricto sensu). Ficará, assim, legalizado o financiamento privado desses cursos nas Instituições de Ensino Superior (IES) públicas.
2) Compreendemos que a cobrança de taxas e mensalidades nos estabelecimentos públicos restringe ainda mais a possibilidade de acesso e permanência da imensa maioria de pessoas oriundas das camadas populares ao ensino superior, portanto também é contrária a todas as formas de substituição do financiamento público da educação pelas cobranças de taxas e vendas de serviços.
3) Atualmente, uma pequena parte das matrículas (cerca de 25%) em nível de Educação Superior estão vinculadas ao setor público. Como bem observa o Fórum Nacional de Educação (FNE), A constitucionalização da oferta de cursos pagos pelas IES públicas reduz ainda mais a responsabilidade do Estado em financiar a universidade pública e pode provocar um processo de privatização desse nível do ensino ainda maior.
4) A PEC pode ainda incentivar que as Instituições de Ensino Superior (IES) recorram, de forma cada vez mais sistemática, à venda de serviços para sua manutenção, distorcendo o princípio da autonomia universitária. Situação que pode ser acelerada diante dos recentes cortes que atingem severamente o orçamento da educação, superando a marca de R$ 12 bilhões em 2015 e tendendo a ser ainda mais graves em 2016. Dessa forma acreditamos que a PEC estimula a substituição do financiamento público pelo privado, através da cobrança de mensalidades pelas IES, desvirtuando seu caráter público e gratuito.
5) Se prevista em lei, as cobranças em questão poderão compor a verba de custeio das Universidades, contribuindo para o processo de desobrigar o Estado em relação ao mesmo custeio, pondo em prática de modo parcial, a autonomia financeira das universidades, sem garantir, entretanto, a tão urgente autonomia de gestão. O problema de essa verba ter a possibilidade de compor o custeio, é que a tendência é justamente a universidade ser cada vez mais pressionada e aumentar a parcela de verba vinda dos serviços cobrados, a fim de reduzir os “gastos públicos”. Ou seja, haverá uma pressão para que sejam aumentados os cursos pagos, desviando o próprio foco da universidade, forçando-a a ser tornar cada vez mais “escolão” (menos reflexiva e mais emissora de diplomas). Entendemos que uma conjuntura de crise econômica, de restrições orçamentárias, não pode ser argumento para mudanças estruturais e que, ao mudar a Constituição, abre-se a oportunidade para aprofundar o processo de privatização, com tendência à financeirização da educação.
6) A PEC avança na privatização do nível de ensino de pós-graduação, sinalizando uma tendência de adoção de medidas semelhantes inclusive para o ensino de graduação.
7) A PEC 395/2014 fortalece um modelo de universidade gerencial, em detrimento do modelo de universidade com ensino, pesquisa e extensão (modelo fundamental para o fortalecimento da missão da Universidade, e para o desenvolvimento soberano do país). O modelo gerencial é voltado para atender ao mercado, concretizando a educação como serviço e não como direito. Além disso, retira direitos e adota uma política permanente de arrocho salarial e de quebra da paridade e da isonomia de remuneração entre os docentes. Como observou aAssociação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), a proposta em discussão na Câmara, se aprovada, ampliará a sobrecarga de trabalho dos professores e a subordinação das atividades acadêmicas aos interesses de mercado. Além disso, não atenderá às reivindicações do conjunto da categoria docente em relação às condições de trabalho e à valorização da carreira e salarial. Na prática, onde isso já acontece, verifica-se um alto grau de adoecimento dos trabalhadores da educação.
8) Há ainda uma questão muito clara, relacionada à concepção de universidade pública. A extensão não deve ser vista como serviço, mas como parte da missão da universidade. Atualmente já há um processo de transformação da extensão em serviço, com cursos pagos, como idiomas, por exemplo. A oferta desses cursos em si não é um problema, o problema é que em muitos casos a extensão universitária vem se reduzindo a este tipo de serviço, ao invés de ser uma maneira de estender de fato o ensino e a pesquisa para além dos muros da própria universidade.
9) Quanto à pós-graduação lato sensu, costuma-se trata-la como uma modalidade de formação apenas voltada para o mercado em geral, com pouca interface acadêmica ou com o serviço publico. Consideramos esta uma visão parcial e que desresponsabiliza a as instituições púbicas, prova disso é que o MEC sequer tem o controle dos cursos ofertados e que não há regulamentação para essa modalidade. Ocorre que a maior parte dos docentes de ensino superior no Brasil atualmente tem como titulação mais alta a especialização e não é verdade que o mercado regula, vide a qualidade das especializações vendidas a preços módicos em qualquer esquina. Também é importante destacar que grande parte dos servidores públicos tem hoje grande interesse nas especializações para aprimoramento profissional. Para muitos estudantes a especialização também é tida como porta de entrada, meio de melhorar o currículo, para adentrar a pós-graduação stricto sensu. De modo que acreditamos que a pós-graduação lato-sensu é um processo importante na formação de recursos humanos, que cumpre papel importante na qualificação de profissionais para o mercado, contribuindo para a reinvenção de formas de gestão dos serviços públicos e privados, instrumentos e perspectivas de trabalho, entre outros alcances, portanto deve ser reconhecida e regulamentada como importante nível formativo que é.
10) Já quanto à cobrança nos mestrados profissionais, acreditamos que a aprovação da PEC pode ser um crime contra ao nível de melhor qualidade da educação brasileira, que é a pós-graduação. Acreditamos que, se aprovada, a PEC pode desconstituir o sistema nacional de pós-graduação, tal qual conhecemos hoje, com critérios claros de avaliação e financiamento, que nos trouxeram a um patamar de excelência nesse nível de formação, pois os cursos com apelo de mercado podem provocar uma migração do mestrado acadêmico para o profissional e nos cursos sem apelo de mercado pode haver uma desnutrição dos mesmos, ou inda podemos formar “ilhas” de excelência dentro de uma mesma universidade. O mestrado profissional tem o mesmo título do acadêmico,ambos são pós-graduações stricto sensu, com autorização, avaliação periódica e qualidade reconhecida. Ressaltamos que a Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o diretório do Fórum Nacional de Pró-reitores de Pós-graduação (Foprop) se posicionaram contra a cobrança dos mestrados profissionais no âmbito das IES publicas. Também destacamos que o Governo Federal deve se responsabilizar pela manutenção financeira dos mestrados profissionais, de modo que estes possam funcionar com todas as condições garantidas.
11) Compreendemos que a Universidade publica deve de fato cumpri uma função publica que demanda sua contribuição ao desenvolvimento das forças produtivas, de modo que é necessária uma legislação, talvez similar à Lei de Inovação Tecnológica ou ao Código Nacional de Ciência e Tecnologia e Inovação (PLC 77/2015), em tramitação, que permite convênios das universidades públicas com empresas e outros entes privados com finalidades específicas. Assim, no lugar de mensalidades, teríamos um convênio da universidade com as empresas, com regras claras, aprovados pelo conselho universitário e com o financiamento do ente privado de toda a estrutura necessária ao desenvolvimento do curso dentro da própria instituição universitária (como ocorre com a pesquisa na Lei de Inovação Tecnológica).
12) Acreditamos que PEC em questão distorce o sentido da formação crítica que deve caracterizar as atividades acadêmicas, submetendo o processo pedagógico à formação de competências orientadas pelos interesses empresariais. Isso pode ser acelerado ou intensificado num contexto de cortes na educação e precarização do ensino superior público, cursos com qualidade duvidosa e finalidades questionáveis podem ser oferecidos com o único objetivo de se arrecadar mais recursos, estimulando-se ainda mais a apropriação das atividades acadêmicas por interesses privatistas.
13) Compreendemos que a substituição do financiamento público da educação por cobranças de taxas e vendas de serviços não garantirá a manutenção e a qualidade das atividades realizadas por essas IES. Como aponta a Fineduca, a PEC em questão é uma das mais graves medidas de desmonte do projeto de educação pública, gratuita, democrática, laica, de qualidade e socialmente referenciada.
14) Por fim, compreendemos que as questões devem ser tratadas para além do debate de “regular o que já ocorre”, de modo a enxergar a universidade com toda a amplitude e complexidade que lhe é inerente, pensando as mudanças na universidade como um conjunto e não de forma localizada e pontual, pequenas medidas aparentemente sem importância podem servir a um projeto de universidade que não se apresenta, sequer entra no debate, mas que nem por isso deixa de ser implementado.
15) Além disso, acreditamos que as Emendas Constitucionais deveriam ser menos constantes em nosso Congresso, pois temos uma bela Carta aprovada em 1988, que consagram direitos fundamentais e devemos valoriza-la.
Diante dos motivos acima expostos, conclamamos Vossas Excelências, senhoras e senhores parlamentares, também a sociedade de modo geral, à proteção dos direitos sociais e a defesa do caráter publico e gratuito, consagrados pela Constituição Federal de 1988, posicionando-se pela rejeição da PEC 395/2014 na votação de segundo turno da mesma.
*Tamara Naiz é presidenta da ANPG e doutoranda em História Econômica na UFG.
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