Humilhações em reuniões e aulas, omissão na resposta sobre a orientação, abandono de responsabilidades com o orientado, pedido para realização de tarefas não relacionada à pesquisa, corte de bolsas e reprovação não justificadas ou com justificativas falsas ou não acadêmicas. A lista é enorme. Infelizmente, essas são atitudes comuns de professores (e orientadores) em relação aos estudantes de pós-graduação. Porém, o que – exatamente – caracteriza uma relação abusiva entre professor-estudante na pós-graduação? Confira nesse artigo uma discussão baseada em dados empíricos e na legislação existente para tentar responder a essa pergunta.
Alguns relatos (do inferno) vivido por pós-graduandos.
Quero iniciar esse artigo com uma coletânea de relatos de abusos sofridos pelos pós-graduandos que tenho recolhido:
São dezenas, senão centenas, de relatos como esses. São desabafos de pós-graduandos vindo direto do sentimento de humilhação, injustiça e omissão na sua relação com seus professores (especialmente com os orientadores). É explícito em diversos deles o aviltamento da dignidade desses estudantes como pessoas, a violação de seus direitos mais básicos como pós-graduandos – como aquele de ter uma orientação para seu trabalho. Como foi possível que chegássemos a essa situação?
Dados de pesquisas sobre abusos na academia
Segundo pesquisa publicada no artigo “O rebaixamento cognitivo” (veja fonte abaixo) que recolheu 1.014 relatos de casos de “constrangimento e humilhação, envolvendo alunos e professores de instituições de educação superior” em seis instituições de educação superior do Estado de Minas Gerais (públicas e privadas) foi possível categorizar 12 situações de abuso sofrido pelos estudantes. No quadro abaixo observamos as 12 categorias e uma definição de cada uma delas comparadas pela frequência com ocorreram.
Os tipos de abusos mais sofridos pelos estudantes pesquisados são “Rebaixamento da capacidade cognitiva”, em primeiro lugar, e “Agressão verbal” na sequência. Somados esses dois tipos de abusos correspondem à 50,49% dos relatos. Confira no gráfico abaixo, feito a partir dos dados listados na tabela:
Outras formas de abuso comuns são “comentários depreciativos” e “recusa em fazer seu trabalho”, respectivamente com 12,03% e 8,97%. Essa pesquisa, voltada para estudantes universitários (graduação) não pode ser considerada um índice da situação dos abusos em relação aos pós-graduandos. Porém, indica bem que o problema está presente na universidade (tanto pública como privada).
Quando a relação professor/estudante pode ser caracterizada como abusiva na pós-graduação?
A literatura científica especializada reconhece os processos de humilhações, agressões e provação de prejuízo acadêmico proposital cometido contra os estudantes como casos de “assédio moral” na universidade. Marie-France Hirigoyen – psiquiatra, uma das pioneiras e mais renomadas estudiosas do assunto no mundo – afirma sobre o assédio moral nas universidades em seu livro A violência perversa no cotidiano:
Ela realizou sua pesquisa pioneira sobre a opressão psicológica no trabalho na França. Sua pesquisa chegou a conclusões que posteriormente foram confirmadas por estudos mais abrangentes tanto na Europa como em outros países – inclusive no Brasil. Elas constataram, em linhas gerais:
O problema, por muito tempo ocultado, vem ganhando certa visibilidade nos últimos anos. Com isso, tem se aprovado leis para assegurar os direitos dos trabalhadores na administração pública contra esses abusos. Em São Paulo adotou-se a Lei n° 12.250 de 9 de fevereiro de 2006 (uma das poucas leis no Brasil que regulamenta e define o assédio moral). Em seu artigo 2° define-se o assédio como:
De acordo com essa lei o assédio moral caracteriza por três aspectos básicos: ele é uma atitude repetitiva, o assediador está em relação de autoridade sobre o assediador e o assédio consiste em “atingir a autoestima e a autodeterminação”. Na sequência dessa “definição” um tanto quanto vaga a lei específica 6 atitudes que se configuram em assédio moral. Se comparamos essas atitudes com os casos relatados por pós-graduandos podemos adaptar algumas definições do assédio moral para o ambiente da pós-graduação:
No Brasil inexiste uma lei em âmbito federal acerca do assédio moral. Alguns estados, entretanto, estão mais avançados nessa questão e já adotaram legislações próprias tratando especificamente desse problema. São eles: São Paulo (lei estadual 12.250, de 9 de fevereiro de 2006 – supracitada), Pernambuco (lei estadual nº 13.314, de 15 de outubro de 2007), Minas Gerais (Lei estadual complementar 116/2011), Rio Grande do Sul (Lei Complementar nº 12.561, de 12 de julho de 2006) e Rio de Janeiro (Lei estadual nº 3921, de 23 de agosto de 2002).
Porém, o Superior Tribunal de Justiça, por intermédio da aprovação do Recurso Especial nº 1.286.466 – RS (2011⁄0058560-5) emitido pela 2ª Turma reconheceu que o assédio moral pode ser enquadrado como um ato de improbidade administrativa. Confira abaixo parte da resolução:
De acordo, pôde-se ler na Lei n° 8.429 de 2 de junho de 1992 que versa sobre a improbidade administrativa:
Portanto, passamos a compreender os atos de abusos cometidos por funcionários públicos – aí incluindo-se professores universitários – como improbidade administrativa por violar os deveres de “honestidade, imparcialidade e legalidade”. Desta forma, podemos responder a pergunta “quando a relação entre professor/estudante se torna abusiva na pós-graduação” da seguinte maneira:
Se os professores agem de maneira reiterada no sentido de aviltar a dignidade humana ou mesmo prejudicar o desempenho acadêmico do estudante com: humilhações (xingamentos, piadas depreciativas, criação de situações de constrangimento público ao estudante, etc.), discriminações (falas e posturas machistas, preconceituosas, etc.), omissão frequentes em fazer reuniões de orientação (ou correção de trabalhos) que prejudicam o andamento da pesquisa, fazem exigências inexequíveis relacionadas (ou não) à pesquisa, cometem atos de assédio sexual (como cantadas, comentários sobre a “beleza”, piadas com conotação sexual, etc.). Os pós-graduandos podem – e devem – denunciar essas atitudes.
Como lutar contra esses abusos?
Inexiste pesquisas acadêmicas sobre o assédio moral na pós-graduação (ao menos não fui capaz de encontrar nenhuma – se souberem de alguma me enviem!). Em si esse silencio não impressiona. O tema é um “tabu” nas universidades. As vítimas são sistematicamente silenciadas tanto pelos seus agressores como por ameaças de outros professores que tentam “defender” o agressor.
O problema é generalizado. Mesmo entre os professores em posições hierárquicas distintas ele ocorre (sem esquecer os casos de assédio entre professores e funcionários). Confira esse link para uma pesquisa sobre esses casos: http://www.apgs.ufv.br/index.php/apgs/article/view/545/333#.WOzdQ9Lyu00 .
Qual é a raiz desse problema? Gostaria de tentar algumas explicações. Em primeiro lugar, é preciso admitir que existe o silenciamento. Mas, além disso, é preciso investigar as possíveis causas dele. É notável que a tipificação dos casos de assédio na pós-graduação gerados a partir da literatura científica existente e das leis brasileiras que estudamos neste texto revelam fatos extremamente comuns no ambiente acadêmico. Dificilmente haverá um único estudante de pós-graduação que já não tenha ouvido falar de abusos de professores (e orientadores) contra estudantes – ou tenha ele mesmo sofrido com isso.
Embora não existam dados sobre o problema na pós-graduação as pesquisas existentes entre os segmentos de estudantes de graduação e entre funcionários/docentes parecem indicar que o problema é realmente alarmante nas universidades. Paradoxalmente, ele é muito pouco abordado e denunciado.
No caso dos pós-graduandos – afirmo pela minha própria experiência – me parece que o fato é que o grau de normalização dessas atitudes que implicam no aviltamento da dignidade humana dos estudantes é tão grande que nós simplesmente “aceitamos” como “normal”. Existe uma visão, que diversos relatos de pós-graduandos por todo o país confirmam, de que alguns professores podem agir como se detivessem um poder ilimitado sobre a vida e a morte acadêmica dos pós-graduandos. Esses agem como se detivessem o poder de prejudicar (ou favorecer) alvos escolhidos ao seu bel-prazer, sem se importar com qualquer parâmetro de dignidade humana ou mesmo de honestidade intelectual. Alguns professores infelizmente – certamente não todos e possivelmente apenas uma minoria, não façamos generalizações injustificadas – agem como se fossem deuses no Olimpo da academia. Dão-se a liberdade de agir para além e acima de qualquer lei, regulamentação ou parâmetros de avaliação acadêmica honesta.
Mas, apesar da imagem que alguns professores parecem fazer de si mesmos como detentores de um poder ilimitado entre os muros da academia, o fato é que eles são funcionários públicos (os professores de universidades públicas) e – enquanto tal – estão obrigados a seguir os ditames dos princípios da moralidade na administrativa pública.
Na minha visão a liberdade para abusar de sua posição hierárquica sobre estudantes e orientados liga-se – é preciso constatar – ao aspecto pouco democrático das próprias universidades. Isto permite que o problema se perpetue. Tenho dito nos fóruns do movimento nacional de pós-graduandos que é preciso lutar pelo reconhecimento do direito a representação política independente da nossa categoria. Esperar que as pessoas que estão em posições elevadas na hierarquia da administração universitária tomem o problema em mãos sem a pressão dos pós-graduandos e suas entidades representativas me parecer ilusório.
Infelizmente, nos diversos casos de abusos contra estudantes que acompanhei como vice-presidente da ANPG os professores muitas vezes adotam uma postura corporativa de defender uns aos outros – mesmo diante dos abusos mais repugnantes (veja mais sobre isso abaixo).
Isto faz com que os representantes discentes nos Programas de Pós-Graduação fiquem acuados em encaminhar denúncias. E, quando estes tentar expor a situação, são eles próprios vítimas de novos abusos e ameaças! Chegamos a um ponto onde se proliferam situações absurdas – como a que ouvi em um relato – onde um estudante de pós-graduação se sentiu injustiçado no processo do corte de sua bolsa e solicitou ao representante discente do programa que questionasse o processo na reunião do programa. Este se recusou a questionar alegando que temia que os professores pudessem prejudicar sua carreira acadêmica como uma forma de “revide” pelo – mero! – questionamento das ações dos docentes.
Embora a situação seja absurda, ela representa bem a realidade dentro dos programas de pós-graduação. O aviltamento do direito a uma avaliação impessoal em disciplinas, ao tratamento respeitoso e a um cronograma mínimo de orientação consistente é comum. Isto se expressa na famosa frase “meu orientador sumiu” ou “disseram que posso perder a bolsa” ou “me ameaçam de desligamento do programa” que tantos pós-graduandos repetem.
Sem o direito a questionar esses abusos o problema se reproduz. Poucos são os estudantes que corajosamente enfrentaram o comportamento corporativista dos professores de defender as violações uns dos outros e romperam o silêncio. Não sem motivos os estudantes temem retaliações contra as denúncias, são muitos os casos que a ANPG recebe todo o mês de estudantes que foram desligados do programa ou perderam suas bolsas ou foram reprovados em disciplinas meramente pelo fato de terem ousado confrontar atitudes abusivas de professores.
Cito aqui – como uma humilde homenagem – o caso da pós-graduando Thais Moya que denunciou publicamente o assédio sexual contra ela cometido pelo seu orientador na Universidade Federal de São Carlos e vergonhosamente “defendido” por alguns dos colegas dele no programa de pós-graduação.
Tudo isso revela a importância de que as universidades reconheçam o direito à representação política dos estudantes de pós-graduação. Sem ela os estudantes têm ainda mais dificuldades para lutar contra os abusos que podem vir a sofrer. Daí a importância da existência das Associações de Pós-graduandos em todas as universidades e que funcione de fato a representação discente de pós-graduação nos órgãos colegiados das universidades. Daí a necessidade de lutarmos por uma regulamentação que estabeleça claramente os direitos dos pós-graduandos, luta histórica desta Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG).
Sem isso não se realiza as condições para que os pós-graduandos possam resistir a esses abusos e começar a mudar essa realidade. Onde impera o medo à perseguição não pode haver verdadeiramente democracia. É preciso romper o ciclo vicioso das ameaças de retaliação acadêmica que emudece as vítimas desses abusos e passar a denunciar os abusos tanto à administração universitária como as entidades estudantis e, se for preciso, começarmos a sistematicamente levar os casos à Justiça.
O que a ANPG pode fazer em relação a tudo isso?
Em primeiro lugar – como foi dito antes – é absolutamente imprescindível que lutemos para constituir organizações representativas independentes dos pós-graduandos. Isto quer dizer: organizações que tenham um funcionamento autônomo da universidade, auto-organização pelos estudantes. Mas, como dissemos, é um passo essencial nisso tudo que as próprias administrações das universidades reconheçam que os pós-graduandos têm esses problemas e que para poderem se defender eles têm o direito de se organizar para essa finalidade.
Em segundo lugar, quero notar que a Associação Nacional de Pós-Graduandos vem já a diversos anos lutando por:
- Que se constitua em cada universidade brasileira uma “Associação de Pós-Graduandos” (APG) que é a entidade que pode – e deve – encaminhar a luta reivindicativas dos pós-graduandos nas universidades (confira aqui a lista de APGs).
- Que todo e qualquer estudante que se sinta prejudicado em seus direitos por ações de professores/orientadores/dirigentes acadêmicos pode – e deve – denunciar a situação à sua APG, ou na ausência desta a ANPG. Nós buscaremos dar atendimento a todos os casos denunciados fornecendo orientações aos pós-graduando para possam ser capazes de defender desses abusos. Bem como orientar as próprias APGs em como encaminhar esse tipo de luta.
Além disso, é preciso reconhecer que a ANPG ainda não envida esforços suficientes no sentido de conscientizar os dirigentes acadêmicos sobre esse problema (bem como o problema associado do estresse e depressão entre pós-graduandos). Por isso, eu acredito que deve se incluir na agenda da entidade, no futuro próximo, uma reunião entre a ANPG e a ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais Ensino Superior) e a própria ANDES (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior) para discutir uma campanha de divulgação e conscientização sobre esses problemas.
Cristiano Junta
Vice-presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos