No dia 27 de outubro os uruguaios irão às urnas para eleger seu próximo presidente da República. A disputa ocorre em meio a um cenário conturbado na região, marcado pelas dificuldades dos governos conservadores eleitos na América do Sul em encontrar saídas para a crise em seus países. Tal realidade reflete a grave situação econômica, social, democrática e ambiental que vivem Brasil, Argentina e Equador, principalmente.
O outubro eleitoral, que terá pleitos no Uruguai, Argentina e Bolívia, pode impactar significativamente os rumos do continente. Ao mesmo tempo, pode representar um freio ao avanço conservador e uma retomada do ciclo virtuoso vivido nos primeiros anos do século XXI.
Neste cenário, ao longo do desenvolvimento da campanha eleitoral uruguaia vai se conformando de maneira mais nítida a polarização entre dois campos antagônicos, que expressam dois projetos de país distintos. Assim, o 27 de outubro vai assumindo um caráter plebiscitário centrado nas candidaturas de Daniel Martinez, intendente de Montevidéu pela Frente Ampla, e Luis Alberto Lacalle Pou, filho de Luis Alberto Lacalle, ex-presidente uruguaio durante o período neoliberal. Além da eleição presidencial, os uruguaios responderão, de fato, a um plebiscito. Isso porque está em discussão no país a realização de uma reforma constitucional que altere as disposições com relação à segurança pública promovida pela campanha “Vivir sin miedo”
Diante de um quadro de aumento da insegurança no Uruguai e de fortalecimento do pensamento conservador na região, o senador do Partido Nacional Jorge Larrañaga liderou a campanha “Vivir sin miedo”. A mobilização tem como objetivo reformar a constituição do país para criar medidas de segurança mais rígidas. A campanha se desenvolveu tendo por centro os debates acerca do cumprimento e revisão de penas para aqueles que cometeram crimes relacionados a estupro, abuso sexual, homicídio, tráfico de pessoas, entre outros. Aliado a isso, o senador propõe a prisão perpétua para casos de abuso sexual, estupro e homicídio de menores, com revisão após 30 anos de pena. A proposta inclui a possibilidade de emissão de mandados de busca noturnos, atualmente proibidos pelo artigo 11 da Constituição do país.
Contudo, o que mais chama a atenção é a proposta de conformar uma guarda composta por militares, subordinada ao Ministério da Defesa para reforçar o trabalho das polícias. A proposta tem a rejeição de grande parte da sociedade. A central de trabalhadores PIT-CNT, Madres y familiares de desaparecidos y detenidos políticos, Casa Grande e o Partido Comunista do Uruguai já se manifestaram contra, bem como o Conselho Universitário da Universidade da República (Conselho Universitário da UDELAR).
Lacalle Pou: del dicho al hecho, hay un trecho.
Ainda que seja possível afirmar que a candidatura de Lacalle Pou tenha colocado a campanha na rua nos primeiros momentos do processo, o candidato do Partido Nacional encontra-se em meio a dificuldades. Ele busca apresentar a imagem de novidade política e renovação programática, porém, carrega consigo o fato de ser filho do ex-presidente Luis Alberto Lacalle. Nada mais antigo na América Latina que filhos de políticos tradicionais que ingressam na política pelas mãos de papai. Tal fato advoga contra o candidato blanco (denominação atribuída aos membros do PN), uma vez que sua suposta mensagem de futuro esbarra nas medidas do governo do pai. Durante o governo de Luis Alberto Lacalle o país platino aderiu às políticas do “Consenso de Washington”, o que levou o Uruguai a quase comprometer as estruturas de bem-estar construídas ao longo de sua história. Assim, ao prometer um futuro de prosperidade, os uruguaios se perguntam: quem é Lacalle Pou? Esse que fala na manutenção da política de valorização do salário e do diálogo democrático e plural entre empresários e trabalhadores ou o que repetirá as políticas de seu pai, que quis esvaziar os Conselhos de Salários (instâncias tripartites em que governo, empresas e sindicatos negociam os aumentos salariais)?
De outra parte, pode-se dizer que Lacalle Pou busca canalizar o programa de toda a oposição ao governo, afirmando referidas vezes que conduzirá um governo de coalizão. Entretanto, tal projeto não está consensuado entre as demais organizações da direita uruguaia, nem mesmo no próprio Partido Nacional, demonstrativo de que líder blanco terá trabalho para costurar um entendimento.
Essa realidade tem levado à candidatura de Lacalle Pou a estabelecer um discurso pendular. Precisa prometer políticas sociais para angariar votos ao mesmo tempo em que deve responder aos setores políticos, sociais e econômicos com os quais está comprometido. Com uma mão, portanto, oferece promessas de garantias sociais e com a outra defende uma agenda de cortes de gastos públicos, ajuste fiscal e austeridade. Dessa forma, tem buscado dialogar com o cenário de fortalecimento de ideias conservadoras na sociedade, em decorrência da crise e da eleição de governos conservadores na região, para apresentar-se como representantes desses interesses.
Assim, se por um lado Lacalle Pou afirma que não está de acordo com o projeto “Vivir sin miedo”, afirma que é favorável ao direito de auto-defesa dos policiais diante de abusos cometidos durante operações. O discurso de Lacalle Pou fica, portanto, limitado pela realidade eleitoral e os compromissos sociais e políticos que assume. Como sustentar um discurso que defende um Uruguai próspero e desenvolvido e indicar Pablo Bartol, amplamente conhecido membro da Opus Dei, como possível ministro de Desenvolvimento Social?!
Resta ao representante da direita uruguaia dedicar-se a explorar o desgaste de quem governa o país há 15 anos – e atravessa um período de crise da economia mundial – e vender um futuro vazio, sem propostas concretas para o país enfrentar a crise. Assim, em sintonia com seus pares a nível regional, acusa o caráter bolivariano das relações internacionais estabelecidas pelos governos frenteamplistas, afirma que é fundamental “desideologizar” a política exterior do país, colocando-o ao lado das nações que defendem o livre mercado, cuja maior expressão é a economia chilena.
Pode-se dizer que até o debate realizado no dia 01 de outubro não havia um clima de campanha efetivamente no país, quadro que mudou diante do fortalecimento da polarização entre os candidatos da Frente Ampla e do Partido Nacional. Ao mesmo tempo, o ingresso tumultuoso da campanha frenteamplista no processo provocou uma virada, tanto no clima quanto na disputa eleitoral.
Defender lo bueno, hacerlo mejor!
A partir do final do mês de setembro é possível identificar uma virada na campanha eleitoral que permitiu uma mudança qualitativa no processo. Este salto se deve à mobilização social em torno da defesa das conquistas alcançadas nos últimos 15 anos. Assim, o processo eleitoral ganhou clima de campanha a partir do momento em que os atores do movimento social organizado ocuparam as ruas contra o retrocesso representado pela candidatura de Lacalle Pou.
A militância social saiu às ruas apresentando um país distinto daquele pintado pelo candidato do Partido Nacional. A candidatura de Daniel Martinez, portanto, se apoia nas conquistas obtidas ao longo dessa década e meia de governos da Frente Ampla, que buscaram construir no Uruguai uma nova matriz produtiva. Ainda que o país não tenha conseguido superar o modelo monocultor, mudanças substanciais foram promovidas na construção de um novo modelo sustentado de crescimento econômico, justiça social, soberania, democracia e integração regional. Tendo o Estado como promotor do desenvolvimento, distintos ramos da economia e da sociedade uruguaia ganharam centralidade nesse objetivo.
À luz da construção dessa nova matriz produtiva políticas foram implementadas e permitiram ao Uruguai manter um ritmo de crescimento econômico contínuo ao longo desses 15 anos, o maior da história do país. Considerando os dados somente de 2011 até a presente data, ou seja, após iniciada a crise internacional, os orientais obtiveram um crescimento de 19% do PIB, segundo dados oficiais. Tal orientação permitiu reduzir a dívida do Estado, que representava 78% do PIB, em 2004, para 41%, em 2018.
O crescimento econômico, relativamente regular, permitiu a implementação de um conjunto de políticas que converteram o Uruguai no país mais igualitário da América do Sul, com a maior média salarial da região. Um dos elementos centrais para isso foi o fortalecimento dos Conselhos de Salários. Um dos pilares do Estado de Bem-Estar construído no país ao longo do século XX, os Conselhos de Salários, instituídos nos anos 40, são instâncias que estabelecem uma relação de mediação do Estado entre empresas e sindicatos. A consolidação dessas instâncias como espaços plurais, que respeitem a diversidade do movimento sindical e considerem as distintas realidades dos trabalhadores, bem como da indústria nacional, estabeleceu uma política de equidade dentre as distintas esferas da produção.
Aliado a isso, a participação ativa do Estado na promoção de políticas sociais fez com que os uruguaios tivessem um aumento de 61% dos salários ao longo dessa década e meia. Entre 2004 e 2019, os governos frenteamplistas promoveram um aumento de 300% no salário mínimo do país, reduziram a pobreza de 39,9%, em 2004, para 8,6%, em 2018; e a indigência de 4,5% para 0,1% durante o mesmo período. No total, houve um incremento dos investimentos públicos e o que se chama de gasto social de 136% ao longo de 13 anos. Resultados de um projeto de país que perseguiu uma mudança qualitativa na dinâmica social, em que o crescimento econômico e o combate às desigualdades sociais andam juntos pois fazem parte da mesma engrenagem.
Outro elemento que permite visualizar a convergência de fatores para um mesmo modelo de desenvolvimento diz respeito à educação. Segundo Cristina Contera, pesquisadora de IESALC-UNESCO (Instituto Internacional da UNESCO para Educação Superior na América Latina e o Caribe) e da Associação de Universidades do Grupo Montevidéu, até 2004 o Uruguai contava com um dos menores investimentos em educação da região. Atualmente, 4,2% do PIB são investidos na área e as matrículas no Ensino Superior cresceram 40%, de acordo com a pesquisadora. Inicialmente, em 1 de março de 2005, aprovou-se um incremento de 50% no orçamento da Universidad de la República (UDELAR), que passou a ser ator central no projeto de desenvolvimento nacional. Atualmente a UDELAR possui 5949 docentes, 7358 cargos diretivos, é responsável por mais de 200 diplomas e títulos de graduação e pós-graduação e concentra 80% das pesquisas no país. Essa expansão permitiu a Universidade um protagonismo ainda maior em nível regional, convertendo-se em um ator importante para a integração educacional e científica da América Latina.
Incluído com papel central no projeto de desenvolvimento, além de contribuir para a elevação da qualidade de vida da população, o Ensino Superior uruguaio joga um papel nevrálgico para a autonomia científica e tecnológica do país, bem como da integração nacional. Através dos centros regionais foram geradas mais 20 mil matrículas e contratados 250 docentes. Entretanto, esses investimentos e políticas não podem ser vistos de maneira isolada, uma vez que refletem a concepção de universidade que permitiu este protagonismo. Assim, ampliou-se a autonomia universitária e a relação PIB-investimentos em educação superior assimilando a universidade no projeto de desenvolvimento nacional. Para atender a essa demanda, a universidade precisou deixar de ser apenas uma prestadora de serviços ou um centro de formação de uma elite intelectual para compreender que a qualidade está diretamente vinculada à pertinência social da educação.
É o contrário do que propõe Lacalle Pou, que defende a adoção de vouchers e sistemas seletivos mais rígidos para o ingresso ao ensino superior, o que, segundo o candidato, elevaria a qualidade do ensino, copiando o modelo falido chileno. A declaração do candidato do Partido Nacional gerou reação da comunidade acadêmica. Para o reitor da Universidad de la República (UDELAR), Rodrigo Arim, em entrevista ao periódico La Diaria, as manifestações do candidato são “preocupantes”. Na sequência, disparou: “se terminan profundizando los sesgos negativos desde el punto de vista de quienes logran acceder a la educación terciaria superior”. Para o professor, “los mecanismos selectivos no son objetivos ni razonables”. Nesse mesmo sentido o dirigente da Federación de Estudiantes Universitarios del Uruguay (FEUU), Mauro Conti, chamou de “lamentáveis” as declarações de Lacalle Pou. E agregou: “No puedo creer que un aspirante a presidente diga que la Udelar no está en los rankings, cuando es la institución que produce 85% del conocimiento científico de Uruguay.”
Pode-se afirmar, por fim, que a construção dessa nova matriz produtiva, proposta pela Frente Ampla, que combina desenvolvimento econômico e combate às desigualdades, foi o fator central que permitiu abrir as portas para conquistas de outra natureza. Tão conhecidos mundo afora, ganharam destaque a aprovação do casamento homoafetivo, legalização da maconha e aborto legal. Entretanto, tais medidas não podem ser vistas como alheias ao projeto de desenvolvimento que permitiu ao Uruguai atingir taxas sociais invejáveis para muitos países. Muito pelo contrário, advém dele pois estão integradas a ele.
Portanto, o debate entre Martinez e Lacalle Pou acerca dos governos da Frente Ampla atribui o caráter plebiscitário do processo no país vizinho. Se o candidato do Partido Nacional busca se apoiar no desgaste dos anos de governo e das consequências da crise mundial, Martinez tem um balanço para apresentar. Entretanto, é a perspectiva de futuro que determinará o pleito. As condições apresentadas aqui amarram a candidatura blanca e limitam sua capacidade de apresentar um projeto de futuro que vincule seus interesses econômicos e os anseios da população. Por outro lado, a palavra de ordem frenteamplista, que defende a necessidade de preservar as conquistas e superar limitações, permite visualizar a perspectiva de um novo ciclo de desenvolvimento que precisa se abrir.
Está claro que um novo ciclo de mudanças exigirá também um conjunto de reformas estruturais que permitam, principalmente, superar o modelo primário exportador. Como todo processo histórico real e concreto, esses 15 anos foram permeados por contradições e limitações. Porém, diante de um quadro de avanço conservador na região, sob a condução da Frente Ampla estabelecem-se condições mais favoráveis para resistir aos retrocessos e lutar por avanços mais profundos na sociedade uruguaia. A virada começou e as últimas pesquisas mostram Daniel Martinez com 41% das intenções de voto, contra 22,6% de Lacalle Pou. A questão está nos demais candidatos de direita, como Ernesto Talvi, do Partido Colorado, que tem 16%, seguido pelo ex-comandante do Exército, Manini Ríos (Cabildo Abierto) com 11,5%. Se é verdade que a divisão da direita beneficia a Frente Ampla, num eventual segundo turno as coisas podem complicar. Nas pesquisas, os cenários de segundo turno ainda são desfavoráveis aos frenteamplistas.
*Mateus Fiorentini é professor de História, mestre em Integração da América Latina pelo Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM-USP). Atualmente é Diretor de Relações Internacionais da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), integra o Comitê Executivo do Espaço de Encontro Latino-americano e Caribenho de Educação Superior (ENLACES) e compõe a Fundação Maurício Grabois (FMG).
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