Por Vinícius Soares, diretor de Comunicação da ANPG
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Tomando licença poética e parafreaseando Euclides da Cunha, podemos dizer que o cientista brasileiro é, antes de tudo, um forte. E assim como o poeta pré-modernista descreve que o sertanejo, na adversidade, consegue sobreviver mesmo na escassez de água e alimento na região do semi-árido, o cientista brasileiro está produzindo ciência de alta qualidade em condições adversas de orçamento.
Um exemplo claro é que, em meio ao caos que está a ciência nacional em virtude dos sucessivos cortes e contingenciamentos, os pesquisadores brasileiros acabam de sequenciar, em apenas 48 horas, o genoma do coronavírus (1) . Algo que os pares mundo afora estão realizando com uma média de 15 dias. Esse pequeno passo será capaz de encurtar o caminho para a prevenção, tratamento e erradicação da doença. Mas não ficam aí os feitos dos brasileiros. Eles vão desde a saúde pública, como quando desvendaram o mistério por trás da epidemia do Zika vírus (2) e a microcefalia, até a engenharia nacional que descobriu petróleo em águas profundas e ultraprofundas (3).
Entretanto, assim como o sertanejo definha atingido um limite de escassez de recursos, o cientista não consegue realizar seu trabalho sem condições mínimas necessárias. E estas estão gravemente ameaçadas pelo atual déficit de investimentos, podendo a qualquer momento colapsar todo o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia do país.
Em que pesem os cortes, a ciência brasileira só está avançando ainda por consequência direta dos massivos investimentos que tivemos nos primeiros quinze anos deste século. Apenas nesse período os investimentos em C&T realizado por dispêndios públicos e privados, mas capitaneados pelos primeiros, saltaram de R$ 60,5 bilhões, em 2003, para R$ 116,4 bilhões, em 2014 (4). Isso veio combinado com a expansão da malha universitária brasileira (a partir do projeto REUNI), com a construção de 18 novas instituições de ensino no país, mais de 100 campi e a duplicação das matrículas de graduação em universidades públicas (saltando de 109.184 em 2003 para 245.983 em 2014) (5).
Além disso, os investimentos em educação e C&T permitiram avançarmos de 48.295 vagas na pós-graduação stricto sensu em 2003 para 203.717, atingindo a marca de mais de 130 mil doutores titulados no Brasil, em 2016 – frente os cerca de 35.000 em 2003 (5,6). Há que se destacar que o índice de doutores de uma população está intimamente ligado ao seu grau de desenvolvimento. Embora o avanço na pós-graduação, o Brasil, se comparado a países da OCDE no critério doutores por habitantes, ainda amarga a 26° colocação entre 28 nações. Ao passo que os EUA formam 8,4 doutores para cada mil habitantes, o Brasil forma 7,6 para cada 100.000! Só ganharíamos do Chile com 4,2 e México com 3,4 (7).
Entretanto, os louros desses investimentos anteriores se esgotarão a curto prazo e, sem uma recomposição do orçamento do setor, todos esses investimentos anteriores em infraestrutura e recursos humanos poderão ir pelo ralo, uma vez que a escassez de recursos está levando o sistema nacional cientifico para além do limite de sua capacidade de suporte.
Apenas para exemplificar, enquanto o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), em 2014, dispendia R$ 3,3 bilhões de recursos, sendo R$ 1 bilhão para fomento à pesquisa, hoje possui apenas 1,3 bilhão de Orçamento – com parte dele já contingenciado pela LOA de 2020 -, sendo apenas 16 milhões para o fomento da ciência (8)a. Além disso, o ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações sofreu redução de 38% de seu orçamento em relação a 2019 e a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior), principal agência que fomenta a pós-graduação, ligada ao Ministério da Educação, teve seus recursos cortados pela metade, caindo de 4,2 bilhões ano passado para 2,2 bilhões esse ano (9).
A condição da produção cientifica também é precária. Os pós-graduandos, que estão diretamente envolvidos com quase 90% da ciência produzida no país, ainda sofrem com a falta de condições para realização de seu trabalho (10). Embora sejam trabalhadores da ciência e contribuam para o desenvolvimento nacional, não possuem direitos trabalhistas e previdenciários. Estão submetidos a baixas remunerações com o valor das bolsas de estudos defasado em quase 50%, já que não são reajustadas há sete anos e nem possuem um mecanismo de reajuste periódico.
Assim, hoje, para produzir ciência, um pós-graduando precisa se dedicar integralmente e recebe, durante dois anos, R$ 1500 para virar mestre e R$ 2.200 para ser doutor, em quatro anos. Destaque-se que esses valores servem para sua subsistência, já que há exigência de não se ter qualquer outro vínculo empregatício. Isso quando recebe bolsa, já que, com os cortes de bolsas, menos de 45% dos 300.000 pós-graduandos brasileiros matriculados em mestrados e doutorados possuem a bolsa de estudo (11).
Uma consequência grave desse estado da arte é que a combinação do potencial criativo, científico e inovativo dos brasileiros com escassez de recursos tem permitido que os países desenvolvidos recrutem esse capital humano com ofertas e condições melhores para produção científica fora do Brasil. Uma fuga de cérebros que está sendo potencializada com a alta do desemprego, o aprofundamento da crise econômica e onda de obscurantismo, com perseguição a professores, cientistas e estudantes por parte do governo federal. Por causa da emigração de profissionais qualificados, apenas no intervalo de um ano, o Brasil caiu para 80° posição em competividade no mundo e de 45° para 70° no item de criação, retenção e atração de novos talentos (12). Novos talentos que poderiam trazer soluções para problemas enfrentados pela população brasileira, desde a cura de doenças passando pelos gargalos da mobilidade urbana, produção de alimentos e energia. Talentos que não se sentem atraídos para produzir ciência e que deixam de contribuir para o desenvolvimento nacional.
Além disso, o desmonte da ciência brasileira tem produzido um atraso na retomada do desenvolvimento nacional, solapando as janelas de oportunidades para produção de conhecimento com objetivo de mitigar as desigualdades sociais e mazelas que assolam o povo brasileiro.
As políticas de ciência e tecnologia condicionam, desde a revolução industrial, o destino e o espaço dos países no mundo. Assim, não é possível pensar em um projeto nacional de desenvolvimento que permita o Brasil realizar todo seu potencial sem investimentos massivos em ciência e tecnologia. Estes, por sua vez, criarão condições materiais para que os feitos dos cientistas brasileiros possam cada vez mais mudar as descrições de uma realidade cruel para milhões de brasileiros, como aquelas descritas por Euclides da Cunha no sertão do país.
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4 –
6 – http://lattes.cnpq.br/web/dgp/principais-dimensoes
7 – https://www.cgee.org.br/documents/10182/734063/Mestres_Doutores_2015_Vs3.pdf
10 – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nivel Superior
11- ANPG
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